quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O Trem de Carne da Meia-Noite - Clive Barker (Parte 4)

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O instinto dirigiu sua ação. Kaufman afundou-se mais sob o banco, o corpo transformado numa bola minúscula, o rosto pálido virado para a parede. Depois cobriu a cabeça com as mãos e fechou os olhos com força, como um garoto com medo do bicho-papão. A porta deslizou, abrindo-se. Clique. Suash. Uma lufada de ar veio dos trilhos. Um cheiro diferente de todos que Kaufman já havia sentido, e mais frio. O ar em suas narinas era algo primitivo, hostil e indescritível. Kaufman estremeceu.

A porta se fechou. Clique.

O Açougueiro estava perto, Kaufman sabia. Devia estar em pé, a poucos centímetros dele. Estaria olhando para as costas de Kaufman? Inclinando-se, a faca na mão, para tirar Kaufman do esconderijo, como um caramujo arrancado da concha? Nada aconteceu. Não sentiu qualquer bafo no pescoço. Sua espinha não foi aberta de alto a baixo. Apenas o som de passos perto da cabeça de Kaufman, depois o mesmo som afastando-se.

O Diabo e o Pedreiro

Havia em Santiago de Compostela, em tempos imemoriais, uma viela na qual os antigos puseram o singular nome de “Travessa do Cego e do Caolho”. Tal minúsculo logradouro, não mais que uma passagem curtíssima entre duas ruas de mediana expressão, abrigava apenas duas casas pequenas, uma de cada lado, cujas janelas e portas se entreolhavam preguiçosamente. Embora estreita a viela – mal podiam passar pelo escaninho duas pessoas magras lado a lado –, muitíssimos transitavam por ela, apesar da perene escuridão que lhe tornava limosas as pedras desgastadas, porque era uma via que encurtava abençoadamente o caminho dos romeiros, já tão cansados, que rumavam à Catedral. E o excêntrico nome da minúscula rua atraía a curiosidade dos viajantes, que estavam sempre a indagar sobre a sua origem. Mas os de Compostela não gostavam de saciar o desejo dos transeuntes. Ficavam eles quase sempre sem resposta, visto como teriam de ouvir falar do Diabo, e isto não era apetecível a uma cidade sagrada, cujo solo servia de repouso eterno ao Apóstolo do Senhor.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

O Trem de Carne da Meia-Noite - Clive Barker (Parte3)

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Às onze horas, uma hora além do que havia prometido a si mesmo, Kaufman ainda não havia terminado. Mas a irritação e o tédio dificultavam o trabalho, e os números se embaralhavam na frente dos seus olhos. As onze e dez entregou os pontos e admitiu a derrota. Esfregou os olhos ardentes com as palmas das mãos até enxergar um verdadeiro calidoscópio sob as pálpebras fechadas.

— Que se fodam! — disse.

Nunca dizia palavrões na frente de outras pessoas. Mas uma vez ou outra dizer “que se fodam” era um grande consolo. Saiu do escritório com o sobretudo úmido no braço e foi para o elevador. Sentia as pernas e os braços dormentes e mal podia manter os olhos abertos.

Os Vivos e os Mortos

Estava atrasado!

Quando cheguei ao velório, o primeiro fato que me chamou a atenção dizia respeito a presença de Helena, sentada e prostrada ao abandono no canto mais discreto da capela. Levei algum tempo até perceber que ela encontrava-se alheia ao que ocorria ao seu redor. A falta de percepção para aceitar o óbvio se constituía em uma das duas perspectivas sempre presentes naquelas ocasiões especialmente fúnebres: havia os que encontravam-se mortos, e sabiam disso, mas recusavam a partida derradeira por pendências pessoais mal resolvidas. Havia os que estando mortos, não se davam conta desta condição.

Helena, infelizmente, encontrava-se na segunda perspectiva: ela não sabia que estava morta!


terça-feira, 29 de outubro de 2013

O Trem de Carne da Meia-Noite - Clive Barker (Parte 2)

Um homem barbado derrubou com o cotovelo a xícara de café de Kaufman. — Merda! — disse ele.

Kaufman virou-se na banqueta para evitar o café que pingava do balcão.

 — Merda disse o homem outra vez.

— Está tudo bem — disse Kaufman. 

Olhou para o homem com um leve ar de desprezo. O desajeitado filho da mãe estava tentando absorver o café com um guardanapo que, aos poucos, se transformava numa papa úmida. Kaufman ficou imaginando se aquele idiota de cara corada e barba malfeita seria capaz de matar alguém. Haveria naquele rosto de comilão algum sinal, alguma pista, talvez o formato da cabeça ou a expressão dos olhos pequenos, que denunciassesua verdadeira natureza?

O homem se dirigiu a ele.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

O Trem de Carne da Meia-Noite - Clive Barker (Parte 1)

Leon Kaufman não era mais um forasteiro naquela cidade. O Palácio das Delícias, como a havia chamado nos dias de sua inocência. Mas isso era quando morava em Atlanta, e Nova York era ainda uma espécie de terra prometida, onde qualquer coisa e tudo eram possíveis.

Agora Kaufman já morava há três meses e meio na sua cidade de sonho, e o Palácio das Delícias não parecia tão delicioso assim. Teria realmente passado apenas uma estação do ano desde que descera na Estação Rodoviária Central e olhara para a Rua 42, na direção do cruzamento com a Broadway? Tão pouco tempo para perder tantas ilusões acalentadas?
Agora, só em pensar na sua ingenuidade, sentia-se embaraçado. Constrangido, lembrava de ter dito em voz alta: “Nova York, eu te amo”. Amor? Nunca! Tinha sido, se tanto, um entusiasmo passageiro. E agora, depois de três meses de vida com o objeto de sua adoração, passando dias e noites dentro dela, a cidade havia perdido toda a aura de perfeição. Nova York era apenas uma cidade.


A Fazenda dos Florence



Sempre soube dos rumores a respeito da propriedade dos Florence. Na pequena cidade onde nasci nenhuma criança se aventurava ao longo da estradinha de terra que levava aos portões enferrujados da velha fazenda ao sul. Desde cedo, em suas residências, lhes era ensinado a temer a estranha família. Ao longo dos anos faziam com que acreditassem que os Florence eram malvados, perigosos, diabólicos. Mas era mais do que isso. Lembro-me de que, certa noite, ao pé da lareira com meu pai, o ouvi contar para todos nós, de sua casa, como a triste família se havia perdido nos caminhos das trevas; como havia trocado as bençãos de Deus pelas falsas promessas de fortuna feitas pelas coisas que andam no inferno e que eles evocavam graças aos poderes da velha matriarca. Ainda me causa calafrios a maneira como meu pai parecia acreditar em tudo o que contava e a forma como ele nos advertia para manter distância, pois aquelas pessoas eram monstros reais que, em noites enluaradas, vagavam soltos dentro dos limites da velha propriedade. "Foram os demônios que os mudaram, meus filhos" dizia meu pai, e seus olhos faiscavam iluminados pelas chamas vermelhas do fogo voraz na parede.


quinta-feira, 24 de outubro de 2013

O Fantasma da Casa 666


Só agora, depois de 30 anos, minha mãe revelou-me o mistério sobre a morte da senhora Margot. Por muito tempo, durante a minha infância, essa curiosidade me perseguiu. Dizem que os fantasmas da infância, diante dos problemas da vida adulta, costumam ser esquecidos, guardados em algum canto da mente. Falam também que a criança que fomos, a exemplo dos fantasmas, nunca morre, simplesmente fica escondida dentro de nós. Talvez por esse motivo, hoje, dia em que completo 42 anos, foi que, vasculhando as teias de aranha dentro da minha cabeça, encontrei a criança curiosa que um dia fui. Corri até a casa da minha mãe e repeti uma pergunta feita a três décadas: como morreu a proprietária da casa 666?

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Alucinação


– Sente-se, por favor. – Disse o Dr. Offenbach.

A mulher obedeceu.

Offenbach, de mãos em concha, uniu os longos dedos pelas extremidades e perscrutou a figura atentamente. A senhora Sílvia Anabel Pissarro de Quiroga era uma mulher na casa dos trinta anos. Gestos comedidos, poderia insinuar uma grave elegância, não fosse todo aquele esforço em conter as torrentes de um espírito atribulado. Estranhamente pálida, tinha o rosto oval e os cabelos quase negros. Os olhos eram uma escura sombra de cansaço. A aflição no olhar a deixava singularmente bela. Agradeceu ao médico com um leve arquear de sobrancelhas.

Rosa aos Mortos


Nos Longínquos anos de 18..., quando o mundo ainda era um lugar assaz aprazível de se viver, eu, em meus dezenove anos, travava conversa com Mr. Oliver, já em seus avançados noventa. Naquela época, viver tanto assim era uma dádiva, mas não para Mr. Oliver. Seus ataques epilépticos aconteciam com uma frequência cada vez maior: Os espasmos e acessos de tosse eram praticamente intermináveis. Eu, vendo-o definhar e sofrer, nada podia fazer senão visitá-lo sempre que possível, contando notícias sobre o mundo. Ele, com seus olhos fechados, ouvidos apurados, escutava a tudo, concordava vez ou outra e, raras vezes, adicionava algum comentário a nossa conversação. Então, quando, em certa ocasião de longo silêncio meditativo, ele falou-me em tom emocionado e voz límpida, não pude deixar de me surpreender.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

O Homem que Queria Matar o Diabo


Tudo começou nos idos de 1896, lá pras bandas de Juazeiro, uma cidadezinha encalacrada nas caatingas do interior da Bahia. Eu trabalhava nos roçados de café na fazenda do coronel João Evangelista Pereira e Melo, homem de posses e de respeito reconhecido por aquelas terras de fim de mundo. Pedro Henrique, o filho estudado do velho João Pereira, estava muito doente, mais pra lá do que pra cá, tísico, botando sangue pela boca, e tossindo uma tosse seca, catarrenta, coisa feia que só vendo:


quinta-feira, 17 de outubro de 2013

O Tradutor

Quando a proprietária do apartamento me disse, muito a contragosto, que o inquilino anterior havia morrido ali, na hora me ocorreu "O Inquilino", meu filme preferido do Polanski, apesar de não ter sido o caso. O inquilino anterior não tentara o suicídio. Foi encontrado morto depois de um mês quando o mau cheiro começou a impregnar o andar. Causa da morte: infarto fulminante. Segundo consta era solitário e anti-social. Como eu. Ela havia ocultado o fato dos pretendentes anteriores, mas não contara com a tagarelice dos vizinhos, o que resultou em sérias dores de cabeça. Desde então resolveu abrir o jogo logo de cara, rezando intimamente para encontrar um inquilino não supersticioso. Demorou, mas apareci.


quarta-feira, 16 de outubro de 2013

O Retrato da Cabocla


Era uma casa simples de pau a pique, móveis rústicos em poucas quantidades e a poeira estavam ali de propósito.

Era uma casa dentro do museu, a casa da cabocla, assim era chamada e atraia muitas visitas sempre, um movimento dos turistas que sempre queriam passar pela casa da cabocla e ver cada detalhe, cada palha, tecidos de xadrez, cada babadinho das toalhas que deixavam a casa feminina. Queriam ver os vestidos feitos pela própria cabocla e também explorar os quitutes de mentira que colocaram de enfeite sobre a mesa e os armários na cozinha.

Nesta casa, bem no centro da casa, na sala, havia um quadro, um retrato grande de uma cabocla, bonita com seus cabelos presos possivelmente em um coque, a boca cerrada e um par de brincos de pérolas. A sobrancelha bem feita e os olhos fundos, porém vivos, acompanhava cada pessoa que por ali passava.


quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Brincando com o Desconhecido


Sexta-feira, 23h50min. Acenderam algumas velas vermelhas pelos cantos da sala, sete amigos sentados formando um círculo e, no centro deles, uma tábua contendo todos os algarismos, todos os números de 0 a 9, um SIM e um NÃO. Temerosos, mas excitados com o que poderia acontecer, olham um na face do outro. Com um sinal de concordância dado por Michel, o mais velho entre eles, Rafael colocou sua mão sobre o copo virgem que se encontrava com a boca para baixo sobre a tábua: 


quarta-feira, 9 de outubro de 2013

A Pata do Macaco

Lá fora, a noite estava fria e úmida, mas na pequena sala de visitas de Labumum Villa os postigos estavam abaixados e o fogo queimava na lareira. Pai e filho jogavam xadrez: o primeiro tinha idéias sobre o jogo que envolviam mudanças radicais, colocando o rei em perigo tão desnecessário que até provocava comentários da velha senhora de cabelos brancos, que tricotava serenamente perto do fogo.

– Ouça o vento – disse o Sr. White, que, tendo visto tarde demais um erro fatal, queria evitar que o filho o visse.

– Estou escutando – disse o último, estudando o tabuleiro ao esticar a mão.

– Xeque.

– Eu duvido que ele venha hoje à noite – disse o pai, com a mão parada em cima do tabuleiro.

– Mate – replicou o filho.


terça-feira, 8 de outubro de 2013

Bruxaria


Palha no fogo, e ele sobe, aumenta, esquenta meus pés. Remexo e giro o líquido, no outro sentido, e as bolhas tornam-se lentas, a estourar preguiçosas. Tornam-se grossas, azuis, e índigo também é a fumaça que agora se desprende, em espirais loucas, alucinadas, deixando a visão turvada, visão que não é minha, inflando o lugar em êxtase. Uma bolha estoura, minha pele sua, tremendo de gozo pelas carícias da fumaça, ansiando as delícias cantadas em seu aroma. Mas espero, me contenho, ou outras vontades o fazem, pois já não sou eu, mas instrumento. Meu braço treme, lento, envolvido pelas finas brumas, que devagar giram o líquido, perdido. O líquido gira, e também giram meus sentidos.


quinta-feira, 3 de outubro de 2013

O Homicídio Perfeito

A  deformidade  de  meu  caráter  jamais  me  envergonhou. Espírito astuto e dissimulado, nunca me expunha a quem quer que seja.   A minha  alma  exsudava  humores  peçonhentos,  malgrado imperceptíveis, mas eu bem sabia como, sorrateiramente, inocular o meu veneno. Era eu um predador cauteloso. Como uma serpente astuta e  insidiosa, mergulhava e recolhia, num átimo de um único segundo, as  presas precisas – profundas e aguçadas –, sem que a vítima o  percebesse.  Isto mesmo: só ensaiava o meu bote certeiro quando se menos esperava.

A Última Execução


Sou filho do ferreiro Alphonse e de Nelly, uma ex-cortesã da taverna dos prazeres. Mamãe deveria morrer em alguns dias. Está muito mal e vem sofrendo demasiadamente com a lepra. Uma peste que ataca a tez e impinge círculos purulentos por todo corpo. Mas ela ainda nutre alguma esperança. Papai se sentou na cadeira de rodas, um hediondo patíbulo, e nunca mais se levantou. Uma viga de ferro caiu sobre suas costas, tornando-o aleijado para todo o sempre. Agora, espera – ansiosamente - a morte escolhê-lo como o próximo. Também é leproso! Ele quer morrer, ela quer viver.


terça-feira, 1 de outubro de 2013

A Morte me Esqueceu

Hoje completo 159 anos. Acho que o vento do tempo passou por mim despercebido. Já não sei se é privilegio ou condenação a viver tanto.  Devo ser o humano mais velho do planeta. Digo isso, porque nunca revelei minha idade real para ninguém. E não me interesso em casos de longevidade. Tenho horror a ficar em evidência. Ficar famoso por ser muito velho não me apraz. As pessoas ficariam me olhando como se eu fosse um museu ambulante. “Olha, lá vai um homem com quase 160 anos”. Isso me incomodaria. Aceito a minha idade naturalmente, essa realidade não posso mudar. E ninguém precisa se preocupar com isso. Cada um que viva o seu tempo ou seus tempos.