quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Asfixia

Começou aos poucos, quase sem ser notado. As crianças foram as primeiras a sentir os efeitos, parando no meio das brincadeiras de pega-pega, esquecendo o futebol pela metade, preferindo montar quebra-cabeças à correria. Depois o boato tomou as conversas em bares, as janelas leva-e-traz das faladeiras, os programas de entrevistas, até virar notícia oficial, grave em seu chamado de cadeia nacional, transmitida a cada povo do planeta por seu próprio governante.

Não se sabia a origem do fenômeno. Nos botecos, diziam que a Terra atravessava uma região do espaço ocupada por elementos de anti-matéria que sugavam a atmosfera. As tevês culpavam os raios solares, a camada de ozônio, o El Niño. Saltando de janela em janela, entre fofocas e ladainhas, um versículo do Apocalipse ecoava: “e o sétimo anjo derramou sua taça pelos ares”. Não havia consenso, mas o fato é que a Terra, como um balão cheio de minúsculos furos, vazava gases para o cosmos.

O mundo estava perdendo ar.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

A Vingança

A prisão era como uma manhã fria, monótona e perigosa eternamente. As favelas em que cresci é o melhor exemplo da agonia diária, onde cada dia parecia ser o último quando um intruso resolvesse invadir sua casa e estourar seus miolos. Uma bala perdida. Fria e certeira. Mortal.

 Num mundo injusto onde a justiça cedo ou tarde não prevalece, o vigor da vida acaba desaparecendo, dando espaço para a sede de vingança.

Fiquei preso durante seis anos, e fui libertado por bom comportamento antes de minha pena de treze. 
Passo a mão em minha barba mal feita na dúvida do que faria primeiro, e sinto a cicatriz de minha garganta saltada de ansiedade, onde uma navalha quase tirou minha vida numa briga entre detentos e policiais, no qual acabei sendo refém de meus próprios companheiros, se assim posso chamá-los.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

O Porão


Anos atrás minha família decidiu passar as férias na serra gaúcha e para isto alugou uma pequena e antiga casa em Gramado para ficarmos durante duas semanas.

No andar térreo a casa possuía uma sala, banheiro e a cozinha. Os quartos eram no andar superior e havia ainda um porão que era usado apenas como depósito de coisas velhas contendo um sofá, armários e outras coisas sem muita importância.

O primeiro dia nesta casa transcorreu de forma tranquila: passeamos pela cidade, voltamos a tardezinha, fizemos um delicioso fondue, brincamos e dormimos todos esgotados pelas atividades do dia.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

O Homem de Preto

Seu nome era Samuel. Ele estava em apuros. Naquela noite escura, alguém o perseguia e desejava matá-lo. Sua vida corria risco, o tempo corria contra ele. Qualquer movimento em falso e seu destino seria irreversível. O desespero tomava conta de seus sentidos.

E agora, o que fazer? Para onde ir? Ele, simplesmente, não sabia nem ao menos se estaria vivo no minuto seguinte. Tudo o que queria era que seu coração se acalmasse.

O tempo estava passando e o cansaço começou a dominá-lo. Suas pernas já não reagiam mais da mesma forma. E, pouco a pouco, ele foi diminuindo o ritmo. Teria chegado seu fim? A morte o levaria naquela noite? Não, Samuel não queria pensar no pior. Ele ainda poderia fugir. Queria que o pesadelo acabasse. Já não tinha mais forças para correr.

sábado, 23 de novembro de 2013

O Caso de Gabriel Orwell

"Estou escrevendo estes fatos para manter a sanidade que ainda resta em mim. Cada dia sinto que ela está escapando entre meus dedos, como se eu tentasse segurar água em minhas mãos.

Escrever sobre a minha situação é muito mais fácil do que falá-la, porque leva mais tempo até as pessoas acharem que eu sou maluco. Não, eu não sou louco. De primeira, eu não soube como lidar com isso. De fato, eu ainda me lembro a primeira vez que eu vi, ou melhor, quando ele me viu.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

A Invocação de Horthembrak


Quem é Horthembrak?

Uma espécie de espírito ou entidade muito comum em lendas urbanas. Não se sabe de onde surgiu a crença, só sabemos que ela ficou muito famosa na região norte do Brasil.

Horthembrak não tem uma definição própria, alguns dizem que ele é um espírito outros que é um demônio, mas a maioria delas assume trata-se de um ser do mundo dos elementares, uma espécie de essência natural inteligente. Muitos acreditem que ele não possua forma própria e que só assume alguma característica física quando quer entrar em contato com humanos.


quarta-feira, 20 de novembro de 2013

O Apartamento 73

Era uma tarde normal de quinta-feira quando estávamos nos preparando para encerrar nosso expediente naquela repartição pública. Eu e mais duas funcionárias conversávamos, aguardando a saída da diretora que ainda estava na sua sala salvado arquivos e desligando o computador. Com um assunto bem corriqueiro, eu e a outras duas servidoras conversávamos sobre a crescente violência na cidade:

– Vale a pena pagar mais para morar num prédio, justamente pela presença de um porteiro e das câmeras.


– É apenas uma sensação de conforto, porque os bandidos também são atraídos pela facilidade e acumulo de bens nos condomínios.


– Isso é verdade, porém eu acho que residir em casa e bem pior.


– Eu sempre residi em casa e só entraram no meu quintal uma vez, para roubar minha bicicleta. Também vão roubar mais o quê na casa de um favelado como eu?


– Foi por isso que mandei fazer um muro bem alto, além do cachorro que avisa quando alguém está próximo. – neste instante surge a nossa chefe já tirando da bolsa a chave do seu carro, quando eu perguntei – A senhora mora em apartamento, não é Dona Josefa? Já teve problemas com a segurança?


A elegante diretora arregalou os olhos verdes esculpidos em um rosto orgulhoso, meditou por dois segundos e se posicionando à nossa frente dando início a este testemunho:



terça-feira, 19 de novembro de 2013

O Artefato

Noites com nevoeiro são perturbadoras em qualquer lugar. Mas no bairro de Marsilac elas têm sempre uma pitada a mais de horripilante. O lugarejo fica numa área de preservação ambiental no extremo sul da capital paulista, já vizinha do litoral. A mata atlântica permanece intocada. Além de tudo, está localizada entre duas represas, a Guarapiranga e a Billings, o que contribui para que a região seja mais nebulosa ainda, devido aos vapores constantes.

Mas de forma especial, nesse dia em que Alexandre voltava da faculdade, quase não se conseguia ver um braço a frente dos olhos. O professor tinha segurado a turma um pouco mais, e sendo a instituição localizada mais ao centro da cidade, já passava muito da meia-noite quando chegou a Marsilac.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

O Fantasma - Stephen King

- Vim porque desejo contar-lhe minha história - disse o homem deitado no sofá do Dr. Harper.

O homem era Lester Billings, de Waterbury, Connecticut. De acordo com os dados anotados pela Enfermeira Vickers, tinha vinte e oito anos de idade, era empregado de uma firma industrial em Nova York, divorciado e pai de três filhos. Todos falecidos.

- Não posso procurar um padre porque não sou católico. Não posso procurar um advogado porque não tenho motivo algum para contratar um advogado. Tudo que fiz foi matar meus filhos. Um de cada vez. Matei-os todos.

O Dr. Harper ligou o gravador.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

A Ratoeira

A paixão de Uriel eram os seus chocolates. Metia-os na última gaveta, lá no fundo, para que ninguém soubesse de seu tesouro. E quando os comia, fazia-o sozinho e em silêncio, de portas trancadas e olhos buliçosamente assustados. Sentia um medo irracional de ser flagrado com suas guloseimas.

Um acesso de raiva, uma raiva mortal, que Uriel conteve num lampejo de lucidez, foi o que sucedeu. Quase chegou a experimentar o arrependimento que sentiria, se tivesse sucumbido aos impulsos primitivos da ira. Mas Uriel controlou-se. Não praguejou. Não esmurrou a mesa. Não ameaçou os colegas. Substituiu toda expressão de ódio por uma fisionomia impassível, enquanto o cérebro trabalhava em ritmo frenético. Agora era descobrir quem furtara os seus chocolates.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Armadilha

Por alguns instantes, apenas as batidas do meu coração rompem o silêncio enervante e ameaçador. Frio. O escuro ao meu redor. Lentamente respiro e procuro ouvir a respiração dos outros. E mais uma vez a voz suave, perigosamente suave, me indaga, quase implora:

— Conte, o que você fez?

No entanto, meus pensamentos estão confusos e não consigo pensar em algo coerente. Nem mover os dedos dos pés. Ficaram adormecidos pelas pancadas com a barra de ferro das últimas horas. Devem estar fraturados e abençoadamente não sinto a dor. Mas sinto o gosto acre do meu próprio sangue nos lábios rachados pelos socos. Tenho sede, muita sede e a desidratação me enfraquece. Ainda assim, consigo balbuciar:


sexta-feira, 8 de novembro de 2013

O Trem de Carne da Meia-Noite - Clive Barker (Final)

Leia as partes anteriores clicando nos seguintes links:
Parte 1, Parte 2, Parte 3, Parte 4


— Partiremos dentro de meia hora — anunciou o alto-falante, exatamente como um aviso comum de estação.

O trem parou. O som das rodas nos trilhos, o deslocamento de ar da sua passagem, aos quais Kaufman já se havia acostumado, desapareceram de repente.Só ouvia o zumbido do alto-falante. Nada via na escuridão. Então, um som sibilante. As portas estavam se abrindo. Um cheiro invadiu o carro, tão cáustico que Kaufman levou a mão ao rosto para se defender dele. Ficou em silêncio, a mão sobre a boca durante o que lhe pareceu uma vida. Não ver o mal. Não ouvir o mal. Não falar o mal. Então, viu um lampejo luminoso fora da janela. Desenhou a silhueta do batente da porta e aumentava gradualmente. Logo a luz no carro era suficiente para que Kaufman visse o corpo encolhido do Açougueiro a seus pés e os lívidos pedaços de carne dependurados em volta dele.


quinta-feira, 7 de novembro de 2013

A Pena do Corvo



Comprei a pena do corvo por um preço absurdo. O contrabandista garantiu que pertencera ao renomado poeta. Possuo muito dinheiro. Quando afirmo isso, creia que não se trata de pouco. Para ter certeza de que tenho em mãos o artefato verdadeiro, mergulho sua ponta em um pote de tinta nanquim. Em seguida, começo a escrever em uma folha de papel branco. Pelo o que se afirma em nosso seleto círculo, o famoso prosador utilizou a pena em seus momentos mais febris de imaginação e criatividade. Seria essa a explicação para textos tão fantásticos e idolatrados pela contemporaneidade? Em sua própria época, o escritor não obteve o verdadeiro e merecido sucesso.

Na era do computador parece uma prática tão sem sentido voltar-me para o uso da tinta e do papel que rio da minha necessidade de ter artefatos antigos. Porém, no caso da pena, sei que é diferente. Meus pares atribuem a ela um caráter mágico. Ainda sem rumo, sem saber como funciona exatamente, deixo a mente vazia para que o artefato guie minha mão. Inicio apenas com palavras soltas sem tentar explicar sua existência sobre o papel: Maeltzel, Maelstrom, Pfall, pêndulo, diabo, Metzengerstein, carta, mistério, Wilson, manuscrito, Berenice, gato, barril, casa. Cada palavra parece conter um universo, uma história para ser contada. Não demoro para identificar a origem desses vocábulos nos títulos dos contos de Poe.