(Sem Formatação)
Sinto um alívio enorme escrevendo isto. Não tenho dormido bem, desde que
encontrei meu tio Otto morto, e houve ocasiões em que cheguei a perguntar-me se não
ficara louco — ou se ficaria. De certo modo, tudo seria mais misericordioso se eu não
estivesse com o objeto real aqui em meu estúdio, onde posso olhar para ele, pegá-lo e
avaliar seu peso, se me der vontade. Contudo, não quero fazer isso; não quero tocar essa
coisa. Só que, às vezes, eu quero.
Se não a houvesse trazido da casinha de um só cômodo de meu tio, quando fugi de
lá, começaria a convencer-me de que tudo não passara de alucinação — uma ilusão de um
cérebro sobrecarregado de trabalho e excessivamente estimulado. Contudo, ela está aqui.
Tem peso. Pode ser apanhada na mão.
Tudo aconteceu mesmo, compreendam.
A maioria dos que lerem este registro não acreditará, a menos que algo semelhante
tenha acontecido a essas pessoas. Descobri que a questão da crença alheia e o meu alívio é
algo mutuamente exclusivo, de maneira que ficarei satisfeito em contar a história, mesmo
assim. Acreditem no que quiserem acreditar.
Qualquer história de horror deve ter uma origem ou um segredo. A minha tem as
duas coisas. Deixem-me começar pela origem — contando como é que meu tio Otto, que
era rico pelos padrões do Condado de Castle, passou seus últimos vinte anos de vida em
uma casa de um só cômodo, sem água encanada, junto a uma estrada secundária, em uma
cidadezinha.
Otto nasceu em 1905, sendo o mais velho das cinco crianças Schenck. Meu pai,
nascido em 1920, era o mais novo. Eu fui o filho caçula de meu pai e nasci em 1955, de
maneira que o tio Otto sempre me pareceu muito velho.
À semelhança de muitos alemães industriais, meus avós vieram para a América com
algum dinheiro. Meu avô instalou-se em Derry, por causa da indústria madeireira, um ramo
sobre o qual ele entendia um pouco. Conseguiu ter êxito e seus filhos nasceram em situação
confortável.
Meu avô morreu em 1925. Tio Otto, então com vinte anos, foi o único filho a herdar
tudo. Mudou-se para Castle Rock e começou a especular na atividade imobiliária. Nos cinco
anos seguintes conseguiu juntar um bom dinheiro, lidando com madeiras e terras. Comprou
uma grande casa em Castle Hill, tinha criados e desfrutou de sua condição como um rapaz
relativamente simpático (digo "relativamente", porque ele usava óculos) e excelente partido
para as jovens casadouras. Ninguém o achava esquisito. Isso aconteceu mais tarde.
Ele foi atingido pelo estouro de 29 — não tanto como alguns, mas foi atingido.
Permaneceu em sua grande casa de Castle Hill até 1933 e então a vendeu, porque uma
grande área madeireira estava à venda por preço ínfimo e ele queria adquiri-la
desesperadamente. A área de terra pertencia à Companhia de Papéis Nova Inglaterra.
A Papéis Nova Inglaterra existe até hoje e qualquer um pode adquirir suas ações,
desde que o deseje. Em 1933, no entanto, a firma oferecia enormes porções de terra a preços
de liquidação, em um último e denotado esforço para manter-se em funcionamento.
Quanta terra havia na área com que meu tio sonhava? A fabulosa escritura original
foi extraviada e os relatos diferem... mas em todos eles, eram mais de quatro mil acres. A
maioria situava-se em Castle Rock, porém espalhava-se até Waterford e Harlow também.
Quando a notícia correu, a Papéis Nova Inglaterra pedia cerca de dois dólares e cinqüenta
por acre... se o comprador adquirisse toda a área.
O preço total chegava a dez mil dólares. Tio Otto não dispunha de toda a quantia, de
maneira que arranjou um sócio — um ianque chamado George McCutcheon. Se residirem
na Nova Inglaterra, vocês certamente conhecerão os nomes Schenk e McCutcheon. A firma
foi comprada há bastante tempo, mas ainda existem lojas de ferragens Schenk e
McCutcheon em quarenta cidades da Nova Inglaterra, bem como serrarias Schenk e
McCutcheon de Central Falls a Derry.
McCutcheon era um sujeito grandalhão, de povoada barba negra. Como meu tio
Otto, também usava óculos. E, também como o tio Otto, herdara uma soma em dinheiro.
Devia ser uma boa quantia, porque ele e tio Otto conseguiram comprar a tal área juntos, sem
maiores problemas. Ambos possuíam natureza de piratas e deram-se muito bem nos
negócios. A sociedade durou vinte e dois anos — de fato, até o ano de meu nascimento — e
prosperidade era tudo o que eles conheciam.
A história começa com a compra daqueles quatro mil acres, que os dois passaram a
explorar no caminhão de McCutcheon, cruzando as estradas entre as florestas e as trilhas
dos madeireiros, rodando laboriosamente em primeira quase todo o tempo, sacolejando em
vias acidentadas e atolando em lamaçais. Eles se revezavam ao volante, eram dois jovens
que se tinham tornado barões da terra na Nova Inglaterra, quando das escuras profundezas
da grande Depressão.
Ignoro onde McCutcheon conseguiu aquele caminhão. Tratava-se de um Cresswell,
se é que isso importa — uma marca que há muito deixou de existir. Tinha uma boléia
enorme, pintada de vermelho-vivo, largos estribos e motor-de-arranque elétrico, mas se este
falhasse, apelava-se para a manícula — embora ela pudesse girar fortemente para trás e
quebrar o ombro de quem a manejasse, se o indivíduo não tomasse cuidado. A carroceria
media seis metros de comprimento, com as laterais fechadas, porém do que mais me lembro
naquele caminhão, era de sua parte dianteira. Como a boléia era pintada em vermelhosangue.
Para alcançar-se o motor, era preciso que se levantasse dois painéis de aço, um a
cada lado dele. O radiador chegava à altura do tórax de um homem. Era uma coisa feia,
mostruosa.
O caminhão de McCutcheon se quebrava e era consertado, tornava a quebrar-se e
era novamente consertado. Quando finalmente entregou os pontos, foi de maneira
espetacular. Mais ou menos como a sege de um só cavalo, no poema de Holmes.
McCutcheon e tio Otto subiam a estrada Black Henry, certo dia de 1953 e, segundo
admitiu meu tio, ambos estavam "bêbados de cair". Tio Otto engatou uma primeira, a fim de
subir a colina Trinity. Tudo bem mas, embriagado como estava, ele nem pensou em mudar a
marcha, quando iniciou a descida no outro lado. O velho e cansado motor do Cresswell
ficou superaquecido. Nem tio Otto ou McCutcheon viram o ponteiro aproximar-se da
marcação vermelha com a letra H, no lado direito do mostrador. No final da descida da
colina, houve uma explosão que estourou os lados dobráveis do compartimento do motor,
como duas asas vermelhas de dragão. A tampa do radiador disparou para o céu de verão. O
vapor esguichou em linha reta para o alto, como o gêiser Old Faithful. O óleo espirrou,
enchendo o pára-brisa. Tio Otto pisou no pedal do freio, mas no último ano o Cresswell
pegara o mau hábito de vazar óleo do freio, de maneira que o pedal foi até o fundo. Não
podendo enxergar para onde dirigia, tio Otto saltou da estrada, caindo primeiro em uma
vala, depois saindo dela. Se o Cresswell houvesse afogado, tudo ainda terminaria bem, mas
o motor continuou trabalhando. Primeiro explodiu um pistão e em seguida mais dois, como
fogos de artifícios no Quatro de Julho. Um deles, segundo tio Otto, veio diretamente contra
sua porta, que ficara escancarada. O buraco era tão grande, que dava para passar um punho
por ele. Finalmente, viram-se todos repousando em um campo repleto das virgas-áureas de
agosto. Dali, eles poderiam ter uma bela visão das White Mountains, se o pára-brisa não
estivesse coberto de óleo Diamond Gem.
Aquele foi o último rodeio para o Cresswell de McCutcheon; ele nunca mais se
moveu daquele campo. Não que houvesse qualquer irritação do dono da terra, pois ela
pertencia aos dois sócios, é claro. Consideravelmente lúcidos pela experiência, tio Otto e
McChutcheon foram examinar o estrago. Nenhum deles era mecânico, mas nem precisariam
ser, para constatar que o ferimento era mortal. Tio Otto ficou constrangido — pelo menos,
foi o que contou a meu pai — e ofereceu-se para pagar o caminhão. George McCutcheon
respondeu que não fosse tolo. Aliás, MeCutcheon havia ficado em uma espécie de êxtase.
Após dar uma olhada ao campo e ver o panorama das montanhas, decidiu que aquele era o
lugar onde construiria sua casa de aposentado. Confessou isso a tio Otto, nos tons
geralmente reservados para conversações religiosas. Retornaram à estrada e conseguiram
carona para Castle Rock no caminhão da Padaria Cushman, que ia passando por ali.
McCutcheon contou a meu pai que ali trabalhara a mão de Deus, ele estivera justamente
procurando o lugar ideal, quando o lugar estava bem ali, o tempo todo, naquele campo pelo
qual passavam três e quatro vezes por semana, sem nunca lhe deitarem os olhos. E a mão de
Deus ignorava que ele morreria naquele campo dois anos mais tarde, esmagado pela parte
dianteira de seu próprio caminhão — o caminhão que se tornou propriedade de tio Otto,
quando seu sócio morreu.
McCutcheon providenciou para que Billy Dodd levasse seu carro-socorro até o
Cresswell e o girasse, de modo a deixá-lo com a frente para a estrada. Disse que assim
poderia olhar para ele, sempre que passasse por ali. Depois, quando Dodd voltasse a
guinchar o caminhão e o rebocasse dali para sempre, naquele lugar é que os operários de
construção lhe cavariam uma adega. McCutcheon tinha um toque de sentimentalismo,
porém não era homem de permitir que os sentimentos o impedissem de ganhar um dólar.
Quando um madeireiro chamado Baker apareceu lá um ano mais tarde, oferecendo-se para
comprar as rodas do CresswelI, com pneus e tudo, porque eram do tamanho exato para seu
veículo, MCCutcheon aceitou seus vinte dólares em um piscar de olhos. E, lembrem-se,
nessa época, ele já era um homem que valia um milhão de dólares. McCutcheon também
disse a Baker que calçasse o caminhão, de maneira a mantê-lo em posição elevada. Alegou
que não queria passar por ali e vê-lo no campo, quase coberto pelo feno, capim rabo-de-galo
e virga-áurea, como se fosse uma carcaça. Baker fez como ele queria. Um ano mais tarde, o
Cresswell rolou para fora de seus blocos de sustentação e esmagou McCutcheon, matandoo.
Os antigos contavam a história com alívio, mas sempre a encerravam dizendo esperarem
que o velho George McCutcheon tivesse aproveitado os vinte dólares conseguidos por
aquelas rodas.
Fui criado em Castle Rock. Quando nasci, meu pai já tinha quase dez anos de
trabalho para Schenck e McCutcheon, de modo que o caminhão de propriedade do tio Otto,
juntamente com tudo o mais que McCutcheon possuía, se tornou um marco em minha vida.
Minha mãe costumava fazer compras na casa Warren's, em Bridgton, sendo a estrada Black
Henry a única via de acesso até lá. Assim, sempre que passávamos pela estrada, lá estava o
caminhão, pousado naquele campo, tendo as White Mountains como fundo. Não se
encontrava mais elevado sobre os blocos — tio Otto dizia que um acidente já bastava - mas
só a idéia do que ocorrera, era suficiente para provocar arrepios em um garoto de calças
curtas.
O Crosswell estava lá no verão; no outono, com os carvalhos e olmos brilhando
como tochas, em três bordas do campo; no inverno, às vezes atolado em montes de neve, até
e sobre seus faróis semelhantes a olhos de besouro, como um mastodonte a debater-se em
branca areia movediça; e na primavera, quando o campo era um lodaçal da lama de março,
fazendo a gente perguntar-se como é que o caminhão não afundava na terra. Se não fosse
pelo espinhaço subterrâneo de boa rocha do Maine, era bem possível que não acontecesse
outra coisa. Através das estações e dos anos, ele estava lá.
Certa vez, até mesmo estive nele. Meu pai estacionou à beira da estrada, no dia em
que estávamos a caminho da Feira de Fryeburg, tomou-me pela mão e me levou ao campo.
Acho que foi em 1960 ou 61. Aquele caminhão me amedrontava. Eu ouvira a
história de como saltara dos blocos e esmagara o sócio de meu tio.
Ouvira tais relatos na barbearia, quieto como um ratinho, sentado atrás da revista
Life que não podia ler, enquanto os homens falavam sobre como McCutcheon havia sido
esmagado e como esperavam que o velho George tivesse aproveitado bem os vinte dólares
pagos por aquelas rodas. Um deles — talvez fosse Billy Dodd, pai do louco Frank — dizia
que McCutcheon ficara parecendo "uma abóbora sobre a qual passara um trator". Isso
atormentou meus pensamentos durantes meses... mas meu pai, naturalmente, não sabia de
nada.
Ele apenas achou que eu gostaria de sentar-me na boléia daquele velho caminhão;
vira a maneira como eu espiava para a carcaça, a cada vez que passávamos ali, e imagino
que tomou meu medo por admiração.
Lembro-me das virgas-áureas, com seu amarelo-vivo apagado pela friagem de
outubro. Recordo o gosto tristonho do ar, um pouco amargo, um pouco pungente, assim
como a aparência prateada da relva morta. Também recordo o uissst-uissst de nossas
passadas. Contudo, o que mais recordo é do caminhão avolumando-se, ficando cada vez
maior — o rosnado dentado de seu radiador, o vermelho sangrento de sua pintura, a
aparência turva de seu pára-brisa. Lembro-me de que o medo me invadiu em uma onda mais
fria e cinzenta do que o gosto do ar, quando meu pai me ergueu pelas axilas e colocou-me
dentro da boléia, dizendo, " Dirija-o até Portland, Quantin... dirija-o!" Lembro-me do ar
passando em meu rosto, enquanto eu subia mais e mais, depois de seu gosto limpo sendo
substituído pelos cheiros de antigo óleo Diamond Gem, de couro rachado, de excrementos
de ratos e... juro... de sangue. Lembro-me de que tentei não chorar, enquanto meu pai ficava
sorrindo para mim, certo de que me proporcionava um prazer e tanto, um grande
excitamento (e proporcionava mesmo, mas não da forma como ele imaginava). Naquele
momento, tive absoluta certeza de que ele iria embora ou, pelo menos, viraria as costas, e o
caminhão me comeria — comeria vivo. E o que depois cuspisse, estaria mastigado,
esmigalhado e... como que explodido. Como uma abóbora, amassada por um trator.
Comecei a chorar, e meu pai, que era o melhor dos homens, tirou-me da boléia,
consolou-me e me levou de volta ao carro.
Ele me levou sentado em seus ombros. Olhei para o caminhão que ia recuando,
parado lá no campo, com seu enorme radiador assomando, o escuro buraco redondo onde se
presumia fora aplicado o guincho do carro-socorro, parecendo uma órbita horrendamente
deslocada. Eu quis dizer a ele que sentira cheiro de sangue, por isso havia chorado. Só que
não sabia como dizer-lhe. Acho que, de qualquer modo, ele não teria acreditado.
Como um menino de cinco anos, que ainda acreditava em Papai Noel, na Fada do
Dente e no bicho-papão, eu também acreditava que vinham do caminhão aquelas sensações
de coisas ruins e amedrontadoras, quando meu pai me colocara naquela boléia. Levei vinte e
dois anos para decidir que não havia sido o Cresswell que assassinara George McCutcheon;
meu tio Otto é que fizera isso.
O Cresswell era um marco em minha vida, mas também na dos moradores de toda a
redondeza. Quando se explicava a alguém como ir de Bridgton a Castle Rock, dizia-se que
ele saberia estar na direção correta, se visse um enorme e velho caminhão vermelho à
esquerda da estrada, em um campo de feno, mais ou menos cinco quilômetros após ter
deixado a estrada 11. Era comum vermos turistas estacionados na curva de terra macia (às
vezes, ficavam atolados lá, o que sempre valia boas risadas), tirando fotos das White
Mountains, com o caminhão do tio Otto em primeiro plano, para a devida perspectiva - por
muito tempo meu pai chamou o Cresswell de "Memorial Trinity Hill do Caminhão para
Turistas", mas acabou parando. A esta altura, a obsessão de tio Otto pelo caminhão já ficara
forte demais para ser divertida.
Já falei demais sobre as origens. Agora, vamos ao segredo.
O fato de que ele matou McCutcheon, é um a coisa da qual estou absolutamente
convencido. "Amassado como uma abóbora", dizem os entendidos da barbearia. Um deles
acrescentou:
— Aposto como ele estava agachado à frente daquele caminhão, rezando, como
aqueles árabes sebosos rezam para Alá. Não poso imaginá-lo de outro jeito. Estavam giras,
compreendam, todos os dois. Basta ver a maneira como Otto Schenk terminou, se não
acreditam em mim. Bem no outro lado da estrada, naquela casinha que ele pensava que a
cidade ia aproveitar como escola — e tão biruta como um rato numa casa de doidos.
Isto era colhido com assentimentos e olhares entendidos, porque então, eles
pensavam que o tio Otto era esquisito — oh, claro! — porém entre os sabichões da
barbearia não havia um só que considerasse aquela imagem — McChutcheon ajoelhado em
frente do caminhão "como aqueles árabes sebosos rezando para Alá" — não apenas
excêntrica, mas também suspeita.
Em cidades pequenas, os boatos sempre fervem; pessoas são condenadas como
ladras, adúlteras, caçadoras ou pescadoras furtivas e trapaceiras, à mais leve evidência e às
piores deduções. Creio que, muitas vezes, o falatório se origina acima de tudo do tédio. Em
minha opinião, o que impede que isso seja realmente cruel — que é como a maioria dos
romancistas pintou as cidadezinhas, de Nathaniel Hawthome e Grace Metalious — é o fato
de serem curiosamente ingênuos (em sua maior parte) os boatos transmitidos pelas linhas
telefônicas partilhadas, na mercearia ou barbearia. É como se tais pessoas, esperando a
maldade e a futilidade, passam a inventá-las quando elas não existem. Contudo, o mal
consciente e real pode estar além de sua concepção, mesmo quando flutua bem diante de
seus olhos, como um tapete mágico de um daqueles contos de fadas dos árabes sebosos.
Como sei que foi ele? perguntam vocês. Só porque estava em companhia de
McCutcheon naquele dia? Não. É por causa do caminhão. Do Cresswell. Quando a obsessão
começou a dominar tio Otto, ele foi morar naquela casinhola, bem no outro lado da
estrada... embora nos últimos anos de sua vida tivesse um medo mortal de que o caminhão
fosse até lá.
Penso que tio Otto atraiu McCutcheon ao campo onde estava o caminhão, elevado
em cima de blocos, com a desculpa de ouvi-lo falar sobre os planos para sua casa.
MeCutcheon estava sempre disposto a falar na tal casa e em seu próximo afastamento dos
negócios. Os sócios tinham recebido uma boa oferta, de uma companhia muito maior — não
mencionarei seu nome, mas se o fizesse, todos saberiam qual é — e McCutcheon queria
aceitá-la. Tio Otto era contrário à idéia. Houvera um quieto desentendimento
desenvolvendo-se entre os dois, por causa daquela oferta, desde a primavera. Acho que esse
desentendimento foi o motivo pelo qual tio Otto resolveu livrar-se do sócio.
Creio que meu tio podia haver-se preparado para o momento, fazendo duas coisas:
primeira, minando os blocos que sustinham o caminhão, e segunda, deixando algo no chão,
talvez um pouco enterrado nele, mas diretamente em frente do caminhão, onde McCutcheon
pudesse vê-lo.
O que colocaria lá? Não sei. Algo brilhante. Um diamante? Nada mais que um
pedaço de vidro quebrado? Não vem ao caso. O objeto reflete o sol e brilha. Talvez
McCutcheon o veja. Se não o vir, fiquem certos de que tio Otto lhe mostrará. O que é
aquilo? pergunta ele, apontando. Não sei, responde McCutcheon, apressando-se a verificar
bem de perto.
McCutcheon fica de joelhos em frente do Cr esswell, exatamente como um daqueles
árabes sebosos rezando para Alá, tentando arrancar o objeto do chão, enquanto meu tio dá a
volta casualmente, até atrás do caminhão. Um bom empurrão, e lá se vai ele abaixo,
esmagando McCutcheon no ato. Amassando-o como uma abóbora.
Desconfio que nele devia haver muito de pirata, para morrer facilmente. Em minha
imaginação, eu o vejo preso debaixo do focinho inclinado do caminhão, o sangue
escorrendo de seu nariz, sua boca e seus ouvidos, o rosto branco como papel, os olhos
escuros, suplicando a ajuda de meu tio, pedindo-lhe que consiga um socorro rápido.
Suplicando... depois implorando... e finalmente xingando meu tio, ameaçando matá-lo,
acabar com ele... e meu tio parado, espiando, com as mãos nos bolsos, até tudo terminar.
Não se passou muito tempo depois da morte de McCutcheon, para que meu tio
começasse a fazer coisas que, a princípio, eram descritas pelos sabichões da barbearia como
estranhas... depois como esquisitas... e por fim, como "infernalmente singulares". As coisas
que finalmente o levaram à condenação, no curioso palavreado da barbearia, sendo julgado
"tão biruta como um rato em uma casa de doidos", chegaram na plenitude do tempo — mas
na mente de todos parecia haver pouca dúvida de que suas peculiaridades começaram mais
ou menos na época em que George McCutcheon morreu.
Em 1965, tio Otto fez construir uma casinha junto à estrada, no lado fronteiro ao
caminhão. Houve muito falatório sobre o que Otto Schenck pretendia fazer na estrada Black
Henry, junto à colina Trinity. A surpresa foi total, quando tio Otto chegou ao acabamento da
pequena construção, fazendo Chuckie Barger pintá-la com uma brilhante mão de tinta
vermelha, e então anunciou que era um presente à cidade — uma nova e bela escola,
segundo disse, pedindo apenas que lhe dessem o nome de seu falecido sócio.
Os membros do conselho municipal de Castle Rock ficaram estupefatos. Como todo
mundo nos arredores. Em Rock, a maioria freqüentara aquelas escolas de um só aposento
(ou achava que tinha freqüentado, o que vem a dar quase no mesmo). Contudo, em 1965,
todas as escolas de apenas uma sala haviam sido abolidas em Castle Rock. A última, a
Castle Ridge School, fora fechada um ano antes. Hoje é uma casa de pizzas, a Steve's
Pizzaville, ao lado da estrada 117. No momento, a cidade contava com uma escola primária,
erigida em vidro e cimento no lado mais distante da área comunitária, bem como um
moderno e excelente ginásio na Rua Carbine. Em decorrência de sua excêntrica oferta, tio
Otto conseguira preencher, em uma só penada, todos os quesitos que iam de "estranho" a
"infernalmente singular".
Os conselheiros municipais enviaram-lhe uma carta (nenhum deles parecendo com
muita coragem de procurá-lo pessoalmente) agradecendo a gentileza e esperando que ele se
lembrasse da cidade no futuro, mas declinando da escolinha, sob a alegação de que todas as
necessidades educacionais das crianças da cidade já haviam sido providenciadas. Tio Otto
ficou danado da vida. Lembrar-se da cidade no futuro? esbravejou para meu pai. Claro que
se lembraria, mas não da maneira como eles queriam. Ele não havia nascido ontem. Sabia
perfeitamente como eram os homens, a humanidade. E se queriam disputar com ele um
concurso de mijo à distância, afirmou, iam ver que podia mijar como uma doninhafedorenta
que tivesse acabado de embocar um barrilete de cerveja.
— E agora? — perguntou-lhe meu pai.
Estavam sentados à mesa da cozinha, em nossa casa. Minha mãe fora costurar, no
andar de cima. Ela dizia que não gostava do tio Otto. Dizia que ele cheirava como um
homem que só tomasse banho uma vez por mês, precisando ou não — "e logo ele, um
homem rico", sempre acrescentava, com uma fungadela. Acho que o cheiro dele realmente a
irritava, mas também acho que minha mãe o temia. Por volta de 1965, tio Otto começara a
parecer singularmente peculiar, também agindo da mesma forma. Andava vestido com
calças verdes de operário, seguras por suspensórios, uma camisa de baixo térmica e enormes
sapatos amarelos de trabalho. Seus olhos haviam começado a girar em direções estranhas,
enquanto ele falava.
— Hum?
— O que vai fazer com a casa agora?
— Vou morar na filha da mãe — bufou tio Otto, e foi o que fez.
Não há muito a acrescentar à história de seus últimos anos. Ele sofria daquela triste
espécie de loucura que costumamos ver relatada nos tablóides de jornais baratos. Milionário
Morre de Subnutrição em Casa de Cômodos. Registros Bancários Revelam, a Mendiga era
Rica. Magnata Banqueiro Morre Esquecido e Abandonado.
Ele se mudou para a casinha vermelha — em anos posteriores, sua pintura desbotou
para um rosado fosco — logo na semana seguinte. Nada que meu pai dissesse conseguiu
dissuadi-lo. Um ano mais tarde, ele vendeu o negócio que, segundo creio, procurara
conservar através do assassinato. Suas excentricidades multiplicaram-se, mas o senso de
negócios não o abandonou e ele conseguiu um vistoso lucro — em realidade, espantoso
seria uma palavra mais adequada.
Assim, lá estava meu tio Otto, valendo talvez uns sete milhões de dólares, morando
naquela casinha junto à estrada Black Henry. Sua moradia na cidade foi abandonada e
trancada. Então, ele progredira de "infernalmente peculiar" para "biruta como um rato
doido". A progressão seguinte é expressa em termos mais crus, menos coloridos, porém
mais ominosos: "talvez perigoso". Tais palavras são, freqüentemente, seguidas pela
convicção.
À sua maneira, tio Otto se tornou uma peculiaridade bem semelhante ao caminhão
no outro fado da estrada, embora eu duvide que algum turista se interessasse em tirar o seu
retrato. Ele deixou a barba crescer, uma barba que se revelou mais amarelada do que branca,
como que infectada pela nicotina de seus cigarros. Também engordou muito. Sua papada
pendia em dobras de carne, marcadas pela sujeira. Os moradores do lugar costumavam vê-lo
parado à soleira de sua singular casinhola, apenas parado e imóvel, espiando a estrada e
além dela.
Espiando o caminhão — o seu caminhão.
Quando tio Otto parou de ir à cidade, meu pai procurou certificar-se de que ele não
morreria de fome. Levava-lhe mantimentos todas as semanas, pagando-os de seu próprio
bolso, porque tio Otto nunca lhe devolvia o dinheiro — nunca pensava nisso, creio eu. Papai
faleceu dois anos antes do tio Otto, cuja fortuna terminou indo para o Departamento
Florestal da Universidade do Maine. Soube que eles ficaram encantados. Considerando-se a
quantia, devem ter ficado mesmo.
Em 1972, depois que consegui minha licença de motorista, eu costumava levar-lhe
os mantimentos semanais. A princípio, ele me encarava com franca suspeita, mas após um
certo tempo, começou a descongelar. Foi três anos mais tarde, em 1975, que me contou,
pela primeira vez, que o caminhão rastejava para a casa.
Na época, eu cursava a Universidade do Maine mas, sendo verão, estava em casa e
retomei o velho hábito de levar-lhe os mantimentos semanais. Tio Otto ficava sentado à sua
mesa, fumando, vendo-me separar os alimentos enlatados e me ouvindo tagarelar. Achei
que ele poderia ter esquecido quem eu era. Ele às vezes esquecia... ou fingia esquecer. Em
certa ocasião, deixou-me com o sangue gelado nas veias quando, da janela, perguntou "É
você, George?" ao ver-me subir até a casa.
Naquele particular dia de julho, em 1975, tio Otto interrompeu uma tagarelice
trivial minha para perguntar, rude e subitamente:
— O que acha daquele caminhão lá fora, Quentin?
Sua aspereza arrancou-me uma resposta sincera:
— Quando tinha cinco anos, molhei as calças na boléia dele. Penso que tornaria a
molhá-las, se voltasse lá agora.
Tio Otto riu, alto e demoradamente. Olhei para ele, surpreso, já que não me
lembrava de tê-lo ouvido rir antes. Sua risada terminou em prolongado acesso de tosse,
deixando-o com as bochechas vivamente coradas. Então, virou-se para mim, com olhos
cintilantes.
— Está ficando mais próximo, Quent — disse.
— O que, tio Otto? — perguntei.
Pensei que, mais uma vez, ele saltava enigmaticamente de um assunto para outro —
talvez quisesse dizer que o Natal estava mais próximo, talvez o Milênio ou a volta de Cristo
Rei.
— Aquela peste de caminhão — disse ele, fitando-me de modo enviezado e
confidencial, que não gostei muito. — Fica mais próximo a cada ano.
— É mesmo? — perguntei cautelosamente, pensando que ali havia uma nova e
bastante desagradável idéia.
Olhei para fora e vi o Cresswell no outro la do da estrada, cercado de feno por todos
os lados, com as White Mountains ao fundo... e por um alucinado minuto, ele realmente
pareceu mais próximo. Depois, quando pisquei, a ilusão se desfez. O caminhão continuava
onde sempre estivera, claro está.
— Oh, sim — disse tio Otto. — Fica um pouco mais próximo a cada ano que passa.
— Ora, talvez esteja precisando de óculos, tio Otto. Eu não vejo diferença alguma.
— Claro que não vê! — bufou ele. — Também não vê o ponteiro das horas se
movendo em seu relógio de pulso, certo? Aquela peste de coisa se move devagar demais
para que se veja... a menos que seja vigiada o tempo todo. Como vigio esse caminhão.
Ele piscou para mim e eu estremeci.
— Por que ele se moveria? — perguntei.
— Ele quer a mim, eis o motivo — respondeu tio Otto. — Não pensa em outra
coisa, o tempo todo. Um dia, vai irromper aqui dentro, e então será o fim. Ele acabará
comigo, como fez com Mac, e será o fim.
Aquilo me deixou bastante assustado. Acho que seu tom perfeitamente lúcido é que
mais me impressinou. E a maneira como os jovens costumam reagir ao medo, é bancando os
espertos ou ficando petulantes.
— Se isso o preocupa, devia mudar-se para sua casa na cidade, tio Otto — falei.
Quem me ouvisse falando com tal despreocupação, jamais saberia que eu tinha as
costas inteiramente arrepiadas. Tio Otto olhou para mim... e depois para o caminhão, no
outro lado da estrada.
— Não posso, Quentin — disse ele. — Às vezes, um homem tem que ficar em um
lugar, esperando o que virá.
— E o que é que virá, tio Otto? — perguntei, embora imaginando que ele se
referisse ao caminhão.
— O destino — disse ele.
Tio Otto tornou a piscar... mas parecia amedrontado.
Meu pai caiu de cama em 1979, com a doença renal que parecia estar melhorando,
apenas poucos dias antes de finalmente matá-lo. No outono daquele ano, em várias visitas
ao hospital, eu e meu pai conversamos sobre tio Otto. Meu pai tinha algumas suspeitas
sobre o que podia ter de fato acontecido em 1955 — suspeitas leves, que se tornaram o
fundamento para outras mais sérias. Meu pai não imaginava o quanto a obsessão de tio Otto
com o caminhão se tornara grave ou profunda. Eu, no entanto, percebia. Ele ficava quase o
dia inteiro parado à porta de sua casa, espiando o caminhão. Espiando, como um homem
observando o relógio de pulso, para ver o ponteiro das horas mover-se.
Por volta de 1981, tio Otto perdera o pouco que lhe restava de lucidez. Um homem
mais pobre já teria sido internado anos antes, porém milhões no banco podem perdoar
bastante loucura em uma cidadezinha — em especial se há pessoas suficientes pensando que
no testamento do sujeito louco pode existir algum legado para a municipalidade. Ainda
assim, em 1981 já havia gente começando a falar seriamente na internação de tio Otto, para
o próprio bem dele. Aquela frase "talvez perigoso", manifesta e implacável, começara a
suplantar "biruta como um rato doido". Ele agora passara a sair de casa e urinar à beirada
estrada, em vez de sair pelos fundos e ir até a floresta, onde ficava sua privada. Por vezes,
enquanto se aliviava, sacudia o punho fechado para o Cresswell e várias pessoas, passando
de carro, pensavam que tio Otto sacudia o punho para elas.
Uma coisa era o caminhão com as cênicas White Mountains ao fundo; outra
totalmente diversa era o tio Otto urinando à beira da estrada, com os suspensórios
pendurados à altura dos joelhos. Aquilo não era atração turística.
Por essa época, eu usava com mais freqüência um terno completo, do que as blue
jeans que me tinham acompanhado durante a faculdade, quando levava para meu tio seus
mantimentos semanais — mas continuava a levar seus alimentos. Também procurei
convencê-lo de que precisava parar de fazer suas necessidades à beira da estrada, pelo
menos durante o verão, quando podia ser visto por gente do Michigan, Missouri ou Flórida,
que acontecesse passar por ali.
Minhas palavras foram em vão. Ele não se dava ao luxo de preocupar-se com
insignificâncias, quando tinha o caminhão para incomodá-lo. Aquela obsessão com o
Creeswell se tornara mania. Ele agora clamava que o caminhão passara para o seu lado da
estrada — para ser mais exato, que estava bem no seu quintal.
— Acordei esta noite, lá para as três horas, e aí estava ele, bem junto da janela,
Quentin — queixou-se tio Otto. — Eu o vi, com o luar brilhando no pára-brisa, a menos de
dois metros de onde eu estava deitado, e meu coração quase parou. Ele quase parou,
Quentin.
Levei-o ao lado de fora e apontei para o Cresswell, que continuava onde sempre
estivera, do outro lado da estrada, no campo onde McCutcheon planejara construir sua casa.
Não adiantou.
— Isso é o que você vê, rapaz — disse ele, com infinita raiva na voz, um cigarro
tremendo em uma das mãos, os olhos girando nas órbitas. — É só o que você vê!
— Tio Otto — falei, tentando ser espirituoso — a gente vê aquilo que é persuadido
a ver.
Foi como se ele não me tivesse ouvido.
— O maldito quase me pegou — sussurrou.
Senti um arrepio. Ele não parecia louco. Infeliz, sim, e aterrorizado, sem dúvida...
mas não louco. Por um momento, recordei meu pai, levantando-me no ar e colocando-me na
boléia daquele caminhão. Recordei o cheiro de óleo, de couro... e de sangue.
— Ele quase me pegou — repetiu tio Otto.
E, três semanas mais tarde, assim foi.
Eu é que o encontrei. Era noite de quarta-feira, e saí com duas sacolas de
mantimentos no banco traseiro do carro, como fazia quase sempre nas noites de quarta-feira.
Estava quente, o ambiente era pesado. De vez em quando, um trovão rugia à distância.
Lembro- me de que estava nervoso, enquanto subia a estrada Black Henry em meu Pontiac.
Era como se estivesse certo de que algo ia acontecer, embora procurasse convencer-me de
que tudo era apenas produto da baixa pressão barométrica.
Dobrei a última curva e, no momento em que a casinha de meu tio surgiu à vista,
tive a mais estranha alucinação — por um instante, pensei que o maldito caminhão estava
realmente à sua porta, grande e volumoso, com sua pintura vermelha e os lados apodrecidos
da carroceria. Pensei em frear , mas antes que meu pé baixasse o pedal, pisquei e a ilusão se
desfez. No entanto, eu sabia que tio Otto estava morto. Sem fanfarras e holofotes; era
apenas o mero conhecimento, da mesma forma como conhecemos a disposição dos móveis,
em um aposento familiar.
Parei apressadamente à sua porta e saí do carro, começando a caminhar para a casa
sem me preocupar em levar os mantimentos.
A porta estava aberta — ele nunca a trancava. Perguntei-lhe o motivo disso certa
vez e, pacientemente, da maneira como se explicaria algo manifestamente óbvio a um
simplório, ele me disse que trancar a porta não manteria o Cresswell do lado de fora.
Ele estava deitado na cama, que ficava à esquerda do único aposento — a área da
cozinha ocupando a direita. Jazia lá, com suas calças verdes e a camisa de baixo térmica, os
olhos abertos e vidrados. Acredito que teria morrido menos de duas horas antes. Não havia
moscas e nem cheiro algum, embora aquele houvesse sido um dia brutalmente quente.
— Tio Otto? — chamei quietamente, sem esperar resposta.
Ninguém vai para a cama e fica lá deitado, de olhos abertos e vidrados daquele
jeito. Se senti alguma coisa, foi alívio. Tudo terminara.
— Tio Otto? — repeti, aproximando-me. — Tio...
Interrompi-me, ao notar pela primeira vez como a parte inferior de seu rosto parecia
estranhamente deslocada — como se estivesse inchada e torcida. Pela primeira vez, notei
que suas pupilas não apenas olhavam, mas estavam realmente espiando com fìxidez, em
suas órbitas. Só que não se dirigiam para a porta ou para o teto. Estavam torcidas, em
direção à pequena janela acima da cama.
Acordei esta noite, lá para as três horas, e aí estava ele, bem junto da janela,
Quentin. Ele quase me pegou.
Amassou-o como uma abóbora, ouvi um dos boateiros da barbearia dizendo,
enquanto eu estava sentado lá, fingindo ler uma revista Life e aspirando os aromas de
Vitalis e óleo Cremoso Wildroot.
Quase me pegou, Quentin.
Aqui havia um cheiro — não de barbearia e não apenas o fedor de um velho sujo.
Era um cheiro oleoso, como de uma garagem.
— Tio Otto? — sussurrei.
Caminhei para a cama onde ele jazia e tive a sensação de encolher, não apenas em
tamanho, mas em anos... voltando aos vinte novamente, quinze, dez, oito, seis anos... e por
fim, cinco. Vi minha mão estender-se para sua face inchada. Quando minha mão o tocou,
abarcando-lhe a face, ergui os olhos e a janela estava tomada pelo brilhante pára brisa do
Cresswell — e embora fosse apenas por um momento, poderia jurar sobre a Bíblia como
não foi alucinação. O Cresswell estava ali, na janela, a menos de dois metros de mim.
Eu havia pousado os dedos em uma das bochechas de tio Otto, meu polegar sobre a
outra, querendo investigar aquela curiosa inchação, imagino. Quando vi o caminhão na
janela, minha mão tentou crispar-se em um punho fechado, esquecendo que a tinha ajustada
frouxamente em torno da parte inferior do rosto do cadáver.
Naquele instante, o caminhão desapareceu da janela como fumaça ou como o
fantasma que imagino que fosse. Simultaneamente, ouvi um ruído de algo esguichando.
Minha mão se encheu de líquido quente. Olhei para ela, percebendo que não segurava
apenas carne e umidade, mas também alguma coisa dura e angulosa. Olhei para baixo e vi.
Foi então que comecei a gritar. Havia óleo escorrendo da boca e do nariz de tio Otto. Óleo,
fluindo dos cantos de seus olhos como lágrimas. Óleo Diamond Gem — do tipo reciclado
que se compra em um recipiente plástico de cinco galões, do mesmo tipo que McCutcheon
sempre usara no Cresswell.
Contudo, não havia apenas óleo; vi algo mais, assomando da boca de tio Otto.
Parei de gritar por um momento e fui incapaz de mover-me, incapaz de afastar de
seu rosto minha mão suja de óleo, incapaz de afastar os olhos daquela enorme coisa oleosa
que apontava em sua boca — a coisa que deixara tão distorcido o formato de sua face.
Por fim, minha paralisia cessou e saí correndo da casa, ainda aos gritos. Cruzei a
porta até meu Pontiac, enfiei-me no carro e gritei de lá. Os mantimentos que trouxera para
tio Otto escorregaram do banco traseiro para o chão, os ovos se quebraram.
Foi por milagre que não me matei nos primeiros três quilômetro — olhei para o
velocímetro e vi que estava a mais de cento e dez. Parei na beira da estrada, fiz algumas
respirações profundas e consegui recuperar parte do meu controle. Comecei então a
perceber que, simplesmente, não podia deixar o tio Otto como o encontrara; aquilo
levantaria muitas perguntas. Eu tinha que voltar lá.
Além disso, devo admitir que fora tomado por uma certa curiosidade infernal. Hoje,
desejaria não havê-la sentido ou ignorá-la; de fato, se acontecesse agora, eu deixaria tudo
correr por si mesmo, que eles fizessem suas perguntas. Não obstante, eu voltei lá. Fiquei
alguns minutos parado diante da porta de tio Otto — mais ou menos no mesmo lugar e
idêntica posição de quando meu tio permanecia ali, tão demorada e freqüentemente, olhando
para aquele caminhão. Fiquei ali e cheguei a esta conclusão: o caminhão através de estrada
mudara de lugar, embora ligeiramente.
Entrei na casinha.
As primeiras moscas estavam circulando e zumbindo em torno do rosto dele. Eu
podia ver marcas oleosas de dedos em suas faces: o polegar na esquerda, três dedos na
direita. Olhei nervosamente para a janela a onde vira o Cresswell assomando... e então
aproximei-me da cama. Peguei meu lenço e limpei aquelas marcas de dedos. Então,
inclinando-me, abri a boca do tio Otto.
O que caiu de sua boca era uma vela de ignição Champion — uma do antigo tipo
Maxi Duty, quase tão grande como o punho de um homem-forte de circo.
Levei-a comigo. Hoje, desejaria não ter feito isso mas, naturalmente, naquele
momento eu estava em choque. Tudo teria sido muito mais misericordioso, se eu não
estivesse com o objeto real aqui em meu estúdio, onde posso olhar para ele, pegá-lo e
avaliar seu peso, se me der vontade — a vela de ignição fabricada na década de 20, que caiu
da boca do tio Otto.
Se a vela não estivesse lá, eu não a teria trazido da casinha de um só cômodo de
meu tio, quando fugi de lá às pressas, pela segunda vez. Então, talvez eu começasse a
convencer-me de que tudo aquilo — não apenas dobrar a curva e ver o Cresswell encostado
ao lado da casinha, como um enorme sabujo vermelho, mas tudo o que aconteceu — foi
apenas uma alucinação. Contudo, a vela está aqui; ela capta a luz. É real. Tem peso. O
caminhão está mais próximo a cada ano, disse ele, e agora me parece que tinha razão... mas
o próprio tio Otto jamais imaginaria o quão próximo aquele Cresswell podia chegar.
O veredito da cidade foi de que meu tio se matara engolindo óleo e isto gerou nove
dias de espanto em Castle Rock. Carl Durkin, coveiro local e não o mais boca-fechada dos
homens, contou que quando os médicos o abriram para a autópsia, encontraram mais de três
litros de óleo nele... e não apenas em seu estômago. Havia óleo em todo o seu organismo. O
que todos na cidade indagavam era: o que tinha ele feito com o recipiente plástico? Porque
jamais foi encontrado qualquer recipiente.
Como falei, a maioria dos que lerem estas linhas não acreditará em nada... em
absoluto, a menos que algo semelhante lhe tenha acontecido. O caminhão, entretanto,
continua lá, em seu campo... e, sejam quais forem os seus méritos, tudo isto aconteceu.
Stephen King
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