domingo, 9 de dezembro de 2018

Amor Imortal


Eu observo você todas as noites.

Vejo quando você chega em casa e procura a chave na bolsa para entrar em seu prédio. Depois, você abre a porta do apartamento, põe o casaco sobre o encosto da cadeira e as compras no balcão da cozinha. 

Vejo você indo ao banheiro e, pelo reflexo do espelho, tomando uma ducha. Acompanho-a caminhando seminua até seu quarto, pondo sua camisola e assistindo TV na sala. Então, você apaga a luz do quarto e deita-se para dormir.

O que é o fim do dia para você, para mim é apenas o começo.

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

O Segredo Do Porão


Todos nós escondemos nossos monstros em algum lugar. No dia a dia, sentimo-nos obrigados a fingir ser melhores do que realmente somos, para sermos aceitos, para sermos queridos, para sermos respeitados.

Se um dia expuséssemos nossos demônios interiores, simplesmente não existiria mais vida na Terra, nós nos mataríamos uns aos outros.

Mas leva muito tempo para chegarmos a esta constatação, temos de fazer uma auto- avaliação e trazermos à tona os nossos maiores medos. Foi o que descobri depois de me casar com Julia.

Nós nos conhecemos na escola, dois adolescentes aprendendo o que é amor. Brigamos várias vezes e, ocasionalmente, namorávamos outras pessoas, mas sempre retornávamos um para os braços do outro até que, um dia, resolvemos tornar sério o nosso relacionamento; assumimos para todos os amigos e jurávamos que nos casaríamos.

Terminei o colégio e comecei a trabalhar num escritório. Estávamos com o dia do casório marcado quando o pai e a mãe de Julia morreram tragicamente num acidente de carro, atingidos por um caminhão com um motorista bêbado no volante. Julia ficou devastada, mal conseguia erguer-se da cama e, num de seus momentos de razão, ela me disse:

sexta-feira, 22 de junho de 2018

A Mão


O som da chuva me dava vontade de fazer xixi. Eu estava rolando na cama desde a meia-noite, inquieta após haver assistido a um filme de terror. Maldita sexta-feira treze e estas sessões intermináveis de monstros e cadáveres na TV!

Mal me segurando, desenrolei-me dos lençóis e pousei os pés nus no carpete do quarto.

Foi quando o inusitado ocorreu. Não foi como se me segurassem, ou como se me apertassem, foi apenas um toque, um resvalo no meu calcanhar, vindo de sob a cama. Tenho certeza de que não era fruto da minha imaginação, a sensação foi clara o suficiente para evitar qualquer dúvida: uma mão, de sob minha cama, havia tocado meu pé.

Gritei, saltando assim como quando, na praia, ondas geladas deslizam na altura das nossas canelas, e instintivamente olhei para a fonte do meu desespero. Nada havia.

Corri para o banheiro, pois o susto aumentou ainda mais meu apuro.

O Cãozinho


O filhotinho veio dentro duma caixa, as crianças pulavam de alegria.

— Você comprou, mãe! Obrigado!

Mas Susana deixou bem claro aos filhos:

— São vocês que vão cuidar dele.

Batizaram o cãozinho de Lúcio, um vira-lata preto. Lúcio era carinhoso, lambia as orelhas dos meninos, corria trôpego pela sala.

Crescia, e foi aí que começaram os problemas. O temperamento de Lúcio mudava, já não era mais tão carinhoso, latia o dia inteiro e rosnava para as visitas. Um dia, mordeu a mão de Susana quando ela tentava tirar um osso de galinha da boca dele.

As crianças o defendiam:


O Filho Morto


Quando Luiz morreu, minha esposa ficou em choque por dias. Talvez eu não tenha sido tão afetado quanto ela pelo simples fato que, quando algo como isto ocorre, alguém tem de manter o equilíbrio. Se todos desabam, que rumo resta a ser tomado? Ou talvez eu apenas não tivesse assimilado a desgraça, fingindo que tudo continuava como antes.

À noite, enquanto Tatiana permanecia no quarto, sedada, eu me levantava e ia até o quarto de Luiz, ler histórias para ele dormir. Apesar da cama vazia, eu tinha a plena sensação de que ele estava ali, rindo das fábulas, as pálpebras pesadas, lutando contra o sono.

A culpa que Tatiana alimentava não era de todo infundada, Luiz estava com ela quando tudo ocorreu, cruzavam a rua, o sinal aberto para os carros, mas Tatiana jura que não havia perigo. Luiz deixou cair a chupeta, sua mãozinha se soltou da de Tatiana, e ele voltou para buscá-la.

segunda-feira, 16 de abril de 2018

O Congresso Dos Anticristos


Davi era diferente. Desde criança, havia uma crueldade naquele menino, um ódio no olhar, maldade nas ações.

No jardim de infância, ele decepou o dedo dum colega com estilete; na primeira série, furou o olho duma menina com um lápis; na terceira série, enfiava ratos mortos nas bolsas das professoras.

Passagens pela polícia, diretoria e conselho tutelar foram inúmeras.

Joana, sua mãe, não sabia a quem mais recorrer, visitou psicólogos, padres e a cinta lambia a bunda do menino quase que diariamente.

Numa manhã, Davi despertou Joana.


quinta-feira, 12 de abril de 2018

Tripas - Chuck Palahniuk


Inspire.

Inspire o máximo de ar que conseguir. Essa estória deve durar aproximadamente o tempo que você consegue segurar sua respiração, e um pouco mais. Então escute o mais rápido que puder.

Um amigo meu aos 13 anos ouviu falar sobre “fio-terra”. Isso é quando alguém enfia um consolo na bunda. Estimule a próstata o suficiente, e os rumores dizem que você pode ter orgasmos explosivos sem usar as mãos. Nessa idade, esse amigo é um pequeno maníaco sexual. Ele está sempre buscando uma melhor forma de gozar. Ele sai para comprar uma cenoura e lubrificante. Para conduzir uma pesquisa particular. Ele então imagina como seria a cena no caixa do supermercado, a solitária cenoura e o lubrificante percorrendo pela esteira o caminho até o atendente no caixa. Todos os clientes esperando na fila, observando. Todos vendo a grande noite que ele preparou.

Então, esse amigo compra leite, ovos, açúcar e uma cenoura, todos os ingredientes para um bolo de cenoura. E vaselina.

Como se ele fosse para casa enfiar um bolo de cenoura no rabo.

Em casa, ele corta a ponta da cenoura com um alicate. Ele a lubrifica e desce seu traseiro por ela. Então, nada. Nenhum orgasmo. Nada acontece, exceto pela dor.

Então, esse garoto, a mãe dele grita dizendo que é a hora da janta. Ela diz para descer, naquele momento.

Ele remove a cenoura e coloca a coisa pegajosa e imunda no meio das roupas sujas debaixo da cama.

quarta-feira, 11 de abril de 2018

A Tumba - H. P. Lovecraft


Ao relatar as circunstâncias que conduziram ao meu confinamento neste asilo de loucos, tenho consciência de que minha posição atual criará dúvidas naturais acerca da autenticidade de minha narrativa. É grande infortúnio o fato de que o grosso da humanidade seja limitado demais, em sua visão mental, para pesar com paciência e inteligência esses fenômenos isolados, vistos e sentidos apenas por uma minoria psicologicamente sensível, os quais jazem fora de toda experiência comum. Homens de intelecto mais amplo sabem que não existe nenhuma distinção precisa entre o real e o irreal; que todas as coisas aparecem como tais apenas em virtude dos delicados meios psíquicos e mentais de cada indivíduo, por meio dos quais nos tornamos conscientes delas; mas o materialismo prosaico da maioria reputa como loucura os lances de visão superior que perfuram o véu comum do empirismo óbvio.

Meu nome é Jervas Dudley, e desde a mais tenra infância tenho sido um sonhador e um visionário. Rico para além das necessidades de uma vida comercial, e de um temperamento inapto para os estudos formais e o recreio social daqueles com quem me relaciono, tenho lidado desde sempre em reinos que não pertencem ao mundo visível, passando minha juventude e minha adolescência debruçado sobre livros antigos e pouco conhecidos e a percorrer os campos e bosques das cercanias de meu lar ancestral. Não creio que o que li nesses livros ou vi nesses campos e bosques fosse exatamente o que os outros rapazes leram e viram ali, mas sobre isso preciso falar pouco, pois que discorrer mais detalhadamente apenas confirmaria essas calúnias cruéis acerca de meu intelecto que às vezes ouço sussurrarem os atendentes furtivos que me rodeiam. Basta-me relatar os eventos, sem analisar as causas.

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Os Estranhos Habitantes de Soledad


A família sempre reputou minha tia-avó como louca. Mas família é família, e se faz necessário encontrar um bode-expiatório, determinar quem é a ovelha negra. Assim, tem-se farto material para fofocas quando há reuniões familiares, e o comportamento misantropo de Joaquina só favorecia esta situação.

Talvez ela fosse realmente louca, ou apenas excêntrica. A verdade é que ela — por opção? — nunca havia se casado; uma aberração, se comparada às irmãs, que não apenas se casaram, como botaram no mundo dúzias de filhos, redundando em uma centena de netos.

Joaquina lutou pelos direitos da mulher na juventude, organizou grupos de teatro, redigiu manifestos contra o Estado Novo, foi presa, apanhou, opôs-se à Guerra Mundial e à exploração da classe trabalhadora, foi exilada no Chile e, quando retornou, finalmente obteve reconhecimento em sua carreira literária com obras de cunho feminista, se se procurar, é possível encontrar o nome dela na listagem dos Mais Vendidos da VEJA, durante o mês de setembro, em meados dos anos 80.

Com o dinheiro dos livros, Joaquina comprou um terreno no interior e construiu uma mansão. Convidou-me várias vezes para visitá-la, tinha-me em grande consideração (porém, a recíproca não era verdadeira), mas sempre encontrei escusas para me eximir da obrigação.

sexta-feira, 23 de março de 2018

O Caso Romero

Eu percebi que você andava estranho, meu filho, quando você parou de sair de seu quarto, ficava o dia inteiro diante do computador, não queria comer, não queria mais conversar comigo, mal dormia, havia se recolhido a um desconhecido mundo interior.

Depois, fiquei sabendo que os filhos de amigos meus também passavam por isto, mas já era tarde demais. Numa manhã de domingo, despertei ao ouvir sua mãe engasgando ao meu lado na cama. Vi você com as mãos esticadas, estrangulando-a, olhar vidrado e boca escancarada. 

Parecia que havia sido dominado por alguma entidade diabólica, nem lembrava o meu filho querido, a quem eu tanto amava e havia criado debaixo do mesmo teto por dezessete anos. Só de pensar que você iria para a universidade em poucos meses meus olhos já se enchem de lágrima.

quarta-feira, 21 de março de 2018

O Livro Dos Hereges


Sei do que sou acusado. 

Nestes últimos dias, vocês viram quantas mentiras disseram sobre mim, que sempre fui um homem violento, que havia ameaçado minha mulher várias vezes antes. Mentiras! Mentiras!

Vejo a minha cunhada ali, sentada, fulminando-me com o olhar. Foi o ódio dela por mim que me arrastou ao tribunal, a querer minha execução. Eu a entendo, também quereria a mesma coisa se minha irmã fosse assassinada; também adoraria ver meu cunhado morto, se cresse ser ele o culpado.

Mas sou inocente, juro, ouçam-me e julguem por si próprios:

terça-feira, 20 de março de 2018

Suzanne


Na terceira página do tablóide AM New York de 2 de julho de 2007, aparece, numa nota discreta, com título “Pássaro ‘vampiro’ atacado”, uma reportagem sobre um pavão agredido por um jovem.

O tipo de notícia que passa despercebido por aqueles que não conhecem o drama de Jim, como chamaremos o rapaz para preservar seu anonimato, morador de Staten Island, NY, Ensino Médio recém-concluído.

Jim não é diferente de mim ou de você; lê X-Men e gosta de filmes de terror, quanto mais trash melhor. Recentemente, completou sua coleção de “A Hora do Pesadelo” e tem procurado no EBay e com colecionadores o raro filme dirigido James T. Flocker, “Ghosts The Still Walk”. Tem suas manias, seus hábitos, seus medos, como todos nós.

Porém, desde o começo deste ano, Jim acreditava que uma vampira o perseguia. Conheceu-a numa festa na casa dum amigo, conversaram pouco, sobre Igrejas Góticas e a invasão dos godos ao Império Romano, mas a menina deixou a festa com outro jovem, gótico como ela.

segunda-feira, 5 de março de 2018

O Abraço


Como poderia me esquecer da primeira vez que vi Mariana?

Um colega de trabalho, empolgado com os rumores, me arrastou ao apartamento dela. Na cozinha, uma dezena de outros homens, silenciosos, fitando a menininha pré-adolescente, frágil, marias-chiquinhas, olhar vazio.

A mãe dela nos instigava a começarmos.

— Podem fazer o que quiser com Mariana. Eu lhes garanto que ela não sentirá nada.

Um tal de João, caminhoneiro, boné e tatuagem no braço roliço, se adiantou. Diante da menina, hesitava:

Contrata-se um Ghostwriter


Eleonor Schneider, diante da máquina de escrever, se preparou para redigir o livro da sua vida.

Ler “São Bernardo” a encantou, a narrativa simples de Paulo Honório; refletiu que também deveria tentar. Mas ela não era nenhum Graciliano Ramos e, assim que a página em branco foi ajeitada, o peso das palavras oprimiu Eleonor. Não sabia o que dizer, nem como.

— Por que você não contrata um Ghostwriter? — Marieta, amiga de infância de Leonor, sugeriu.

— O que é isto?

— Algo comum nos Estados Unidos, amiga. “Escritor-fantasma”, em português, você paga alguém para colocar suas ideias no papel e, no final, quem recebe os créditos é você. Mais fácil, impossível.

A Ambição de um Homem

A sala estava silenciosa, a não ser pela música suave, vinda do rádio ligado. A sala estava silenciosa, o silêncio que só é possível quando se tem duas pessoas juntas.

Contudo não se tratava da calma afetiva de amantes, mas a serenidade da decepção que tinha como fundo a música, que apagava o passar do tempo; o ruído de uma vagarosa disputa.

Estavam lendo - ela sentada em sua poltrona de braços, ele na dele. Ele colocou o livro aberto sobre o colo, para encher seu cachimbo. Ela tossiu, quando a fumaça a alcançou.

– Você precisa, fumar esta coisa? – ela pergunta.

– Eu gosto. - ele responde.

– Outros homens fumam tabaco. – ela completa.

– Eu fumo o que posso pagar.

– Barato! Ela queixou-se. 'Barato, barato! Desde que fui tola o bastante para me casar com você, tem sido assim, tudo tem que ser barato! Um apartamento barato numa cidade barata. Comida barata. Bebidas baratas. Roupas baratas. Um carro barato ...