segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Corpo Seco


Uma súbita e quente rajada de vento levantou com ímpeto os particulados áridos e as folhas avulsas daquele vasto campo à beira da estrada. Embora marcante, a ação da ventania não se mostrou duradoura, não tardando para que a calmaria voltasse a reinar nas cercanias do distante pomar.

Nenhuma anormalidade se mostrava evidente nos numerosos e diversificados exemplares frutíferos ali expostos. A exceção se fazia valer numa alta e frondosa mangueira, cujos frutos jaziam no chão. A exuberância em degrade verde e dourado era assaltada por uma ação invisível e avassaladora, a qual tomava para si o viço marcante dos frutos, entregando a eles, em contrapartida, um revestimento acinzentado e opaco, um frágil castelo elevado aos céus pelo delicado beijo de uma simples corrente de ar.

O Deus dos Desejos Sórdidos

A batida frase de que só damos valor a uma pessoa quando a perdemos é uma das premissas mais verdadeiras senão a mais verdadeira de todas as premissas. Talvez ninguém nunca tenha parado para pensar como a vida segue um ritmo cíclico mediante as nuances e fatos sobre o valor da perda. Muitas das vezes, estes fatos simplesmente são inferidos ao mero acaso. Porém, nada é por acaso, encontrar um velho amigo e uma antiga namorada depois de tanto tempo num coletivo ou numa fila de banco pode ser considerado um acaso, mas não a premissa de que só damos valor às pessoas quando as perdemos, pois no cíclico ritmo da vida, ora essa pessoa lhe é essencial, ora um objeto que pode ser substituído por uma aventura extraconjugal ou por uma obsessão desmedida por algo que no fim, acaba não valendo a pena. E quando todas as frustrações vêm à tona num verdadeiro e devastador tsunami de desolações, o cíclico ritmo da vida devolve a essência inicial a qual aquela pessoa representava, e ai, meu chapa, é tarde demais, pois a dor da ausência aperta o coração como se mãos espectrais atravessassem o peito. E foi nesse tsunami de desolações que eu dei falta de Maria Luíza, depois eu apenas quis matá-la.


quinta-feira, 26 de setembro de 2013

A Coleção De Bonecas

O céu estava azul e limpo, nem se quer uma nuvem no céu apaziguava o sol leve, porém intenso. O trigo dourado refulgia sob seus raios, tombado pela leve e gélida brisa que soprava durante a manhã. A pequena camponesa, tão branca quanto à neve que cairia nos próximos meses, com as bochechinhas gorduchas rosadas pelo frio e de cabelos tão dourados quanto o trigo, andava pelo meio da plantação, olhando os pequenos insetos que por ali ficavam. Eventualmente tropeçava em um ou outro buraco.

– Bom dia, senhor Espantalho!- disse ela contente para o velho, murcho e esfarrapado espantalho que ela tanto insistira para a mãe costurar. – Você nunca me responde não é mesmo?

O espantalho permaneceu imóvel, na sua quietude de farrapos e migalhas.


quarta-feira, 25 de setembro de 2013

O Mágico e o Mago


Praça da Sé, São Paulo. O jovem de roupas pretas, camisa aberta e maquiagem negra nos olhos sabe que, naquele momento, a multidão à sua volta está torcendo para que tudo dê errado e eles tenham uma bela história de desgraça para contar, sobre um idiota aveadado metido a mágico que foi parar no hospital.

Ele respira fundo e se concentra no truque que vai executar. Afinal, se der errado, ele realmente pode acabar no hospital.

A imensa cruz em X está deitada no chão. Ele caminha e se deita sobre ela. Seus assistentes se aproximam e, com auxilio de pesadas marretas, começam a pregá-lo na cruz, com grossos pregos, que fazem jorrar sangue de suas mãos.

Seu rosto se cotorce como se suportasse uma dor lancinante em silêncio. A platéia se admira, pois a visão de alguém sendo crucificado tem sempre um apelo muito forte.


terça-feira, 24 de setembro de 2013

O Noivado Infeliz De Aurélia

Os fatos que se seguem foram narrados numa carta que me escreveu uma jovem da bela cidade de San José.

Devo esclarecer que não conheço, em absoluto, a signatária do referido documento, que se assina simplesmente Aurélia-Maria – provavelmente um pseudônimo.

A pobre garota tem o coração transtornado pelos infortúnios que vem sofrendo. E sente-se tão perturbada pelos conselhos, uns diferentes dos outros, de amigos ignorantes e inimigos insidiosos, que não sabe mais o que fazer mais para se ver livre da teia do destino, na qual parece encontrar-se presa para sempre.


sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Matéria Cinzenta - Stephen King

Durante toda a semana vinham prevendo uma tempestade do norte e ela chegou por volta de quinta-feira, uma nevasca violenta, com ventos uivantes, que deixou uma camada de dez centímetros de neve às quatro da tarde e não deu sinal de arrefecer. Os quatro ou cinco de costume estavam reunidos em torno do Confiável no Coruja Noturna de Henry, que é o único estabelecimento para cá de Bangor que fica aberto dia e noite.  

Henry não faz grandes negócios ― o movimento, em grande parte, resulta de vender cerveja e vinho aos universitários ―, mas ganha o suficiente para viver bem e o bar é um bom lugar para nós, velhos aposentados, nos reunirmos e falarmos de quem morreu e de como o mundo está indo para o brejo. 

Nessa tarde, Henry estava ao balcão; Bill Pelham, Bertie Connors, Carl Littlefield e eu estávamos perto do fogão. Lá fora, nenhum carro se movimentava na Ohio Street e os tratores de limpar neve trabalhavam como loucos. O vento soprava forte, formando montinhos de neve que pareciam o dorso de um dinossauro. 

O Círculo De Sal

"Meu Deus, como eu vou sair dessa agora?"

Sentada no chão, tendo à sua volta apenas um círculo feito de sal grosso, Thammires forçava o rosto contra as palmas das mãos, em desespero. E, diga-se de passagem, seu desespero era plenamente justificado pelos acontecimentos daquela noite.

Olhou a sua volta pela milésima vez: o pequeno porão, que os donos da casa haviam convertido em despensa, iluminado pela luz de uma velha lâmpada de sessenta watts, não apresentava mais nenhuma saída além da porta que a levaria de volta para o andar térreo da casa. E, naquela casa, ela nunca mais iria pôr os pés. Aliás, se tivesse seguido seu pressentimento inicial, não estaria ali agora. Não estaria naquela situação, agora. E Jared ainda estaria vivo.

A lembrança de Jared trouxe lágrimas novamente aos seus olhos, mas ela forçou-se a não chorar. Haveria tempo para isso mais tarde. Chorar agora seria um luxo que ela não podia sustentar. Precisava estar focada em sua sobrevivência.

Continuou observando o porão. Não havia janelas. Isso era bom. Não podiam entrar. Mas isso também era péssimo. Ela não podia sair. Mas também, sair iria resolver alguma coisa? Sua última tentativa de deixar a casa havia sido desastrosa. Ela estava encharcada. Enrolou-se em alguns panos de chão que encontrou no porão. Tinha que evitar a hipotermia a todo custo. Fosse devido ao frio ou ao cansaço, não podia dormir, tinha que estar atenta.


quinta-feira, 19 de setembro de 2013

O Homem Que Adorava Flores - Stephen King


No início de uma noite de maio de 1963, um jovem com a mão no bolso subia energicamente a Terceira Avenida em Nova York. O ar era suave e lindo, o céu escurecia gradativamente de azul para o belo e tranqüilo violeta do crepúsculo. Existem pessoas que amam a metrópole e aquela era das noites que motivavam esse amor. Todos os que estavam parados às portas das confeitarias, lavanderias e restaurantes pareciam sorrir. Uma velha empurrando dois sacos de verduras num velho carrinho de bebê sorriu para o jovem e o cumprimentou 

― Oi, lindo! O jovem retribuiu com um leve sorriso e ergueu a mão num aceno. Ela seguiu caminho, pensando: Ele está apaixonado. 

O jovem tinha aquela aparência. Usava um terno cinza-claro, a gravata estreita ligeiramente frouxa no colarinho, cujo botão estava desabotoado. Tinha cabelo escuro, cortado curto. Pele clara, olhos azuis-claros. Não era um rosto marcante, mas naquela suave noite de primavera, naquela avenida, em maio de 1963, ele era lindo e a velha refletiu com instantânea e doce nostalgia que na primavera qualquer pessoa pode ser linda... se estiver indo às pressas encontrar-se com a pessoa de seus sonhos para jantar e, talvez, depois dançar. A primavera é a única estação em que a nostalgia parece nunca tornar-se amarga e a velha seguiu seu caminho satisfeita por haver cumprimentado o rapaz e alegre por ele haver retribuído o cumprimento erguendo a mão num aceno. 


O Poço e o Pêndulo - Edgar Allan Poe


Estava exausto, mortalmente exausto com aquela longa agonia e, quando por fim me desamarraram e pude sentar-me, senti que perdia os sentidos. A sentença – a terrível sentença de morte – foi a última frase que chegou, claramente, aos meus ouvidos. Depois, o som das vozes dos inquisidores pareceu apagar-se naquele zumbido indefinido de sonho. O ruído despertava em minha alma a idéia de rotação, talvez devido à sua associação, em minha mente, com o ruído característico de uma roda de moinho. Mas isso durou pouco, pois, logo depois, nada mais ouvi. Não obstante, durante alguns momentos, pude ver, mas com que terrível exagero! Via os lábios dos juízes vestidos de preto. Pareciam-me brancos, mais brancos do que a folha de papel em que traço estas palavras, e grotescamente finos – finos pela intensidade de sua expressão de firmeza, pela sua inflexível resolução, pelo severo desprezo ao sofrimento humano. Via que os decretos daquilo que para mim representava o destino saíam ainda daqueles lábios. Vi-os contorcerem-se numa frase mortal; vi-os pronunciarem as sílabas de meu nome – e estremeci, pois nenhum som lhes acompanhava os movimentos. 

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Campo De Batalha - Stephen King

A voz do recepcionista deteve-o a meio caminho do elevador e Renshaw voltou-se, impaciente, passando a maleta de vôo de uma mão para outra. O envelope em seu bolso, cheio de notas de vinte e cinqüenta dólares, estalou audivelmente. O trabalho correra bom e o pagamento fora excelente ― mesmo depois da redução dos 15% de comissão cobrados pela Organização como taxa de agenciamento. Agora, tudo que ele queria era um chuveiro quente, um gim-tônica e dormir. 

― O que é? 

― Uma encomenda, senhor. Quer assinar o recibo, por favor? 

Renshaw assinou e fitou pensativamente o pacote retangular. Seu nome e endereço estavam escritos na etiqueta gomada, numa caligrafia inclinada que lhe parecia familiar. 

Balançou o pacote sobre a superfície imitando mármore do balcão e algo produziu um leve ruído metálico lá dentro. 

― Quer que eu mande levar lá em cima, Sr. Renshaw? 

― Não. Está bem assim. 

O pacote tinha cerca de meio metro de comprimento e se ajustava um tanto desajeitadamente sob seu braço. Renshaw deixou-o sobre o espesso tapete que cobria o chão do elevador e girou a sua chave na abertura correspondente ao apartamento de cobertura, que ficava acima dos botões dos andares normais. O elevador subiu, silencioso e macio. Renshaw fechou os olhos e reviu o trabalho na tela escura de sua mente. 

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Caçando Lobisomens

No início dos anos 40, em um bairro da zona norte do Rio de Janeiro, vivia um sujeito chamado Eleutério, que, segundo diziam, "virava" lobisomem, mas, até então, ninguém havia provado nada. Era um sujeito de poucas palavras, que trabalhava em uma granja, onde tinha um quarto para dormir.

Quatro jovens amigos (três rapazes e uma moça), voltavam de um espetáculo no circo recém-armado na cidade. Era noite de lua cheia, de quinta para sexta-feira, ocasião em que, segundo a crença popular, uma pessoa amaldiçoada, ou que padecesse do mal da licantropia, seria influenciada pela lua cheia a se transformar (ou se convencia estar transformada) em lobisomem. Era, portanto, uma noite típica, daquelas que, pela presença da enorme lua cheia pairando no ar, as pessoas, no mínimo, pensavam em coisas desse tipo, principalmente aquelas influenciadas por histórias de terror, com os monstros da distribuidora Universal Filmes, famosos na década anterior.

sábado, 14 de setembro de 2013

O Demônio e o Anjo

Como acabei de dizer no "Tá Duvidando", estou com um pouco de pressa, então este texto pode conter alguns pequenos erros, caso encontre algum, por favor, avise nos comentários.

De longe, sentado sobre um sofá de couro negro rasgado e deteriorado pelo tempo, dentro de uma casa abandonada em frente a este fatídico prédio, lá estava ele. Olhando a movimentação dos carros de polícia e das ambulâncias, que não paravam de ir e vir, retirando os corpos dos infelizes. Foi um massacre.

Noite passada ele lembrou, como o gosto da carne ainda estava em sua boca. Não tinha culpa. Aquilo fora pedido. Aquilo fora cobrado dele. Todas aquelas pessoas não mereciam morrer, somente uma parcela. Porém, quando a raiva chega não há controle.

E ele se lembrava de cada momento que havia passado até então.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

O Recomeço

Alguns anos no futuro...


"Papai, porque eles nos odeiam?"


"Oh querida, pode parecer que eles nos odeiam, mas na verdade, eles nos escolheram".


"Mas papai, porque eles estão fazendo isso?"


"Não sei querida, mas, infelizmente, essa é a vontade deles. Esta será a última vez que isso acontece, o mundo vai ver... Há um velho ditado que diz que é preciso destruir antes que se possa criar. É como quando você brinca com seus blocos de montar. Antes de construir algo novo, você tem desmontar o que tinha feito antes. A mesma coisa acontece com os homens e as cidades". 

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

A Árvore Dos Enforcados



Quando a norte-americana Eletronics Company Empire resolveu montar sua filial brasileira em nossa cidade, eu era um jovem de vinte e cinco anos, havia me formado em informática na universidade local e ansiava por encontrar um emprego seguro que influenciasse minha namorada a decidir-se favoravelmente ao meu pedido de casamento. Samira estava relutante a respeito do matrimônio simplesmente porque não tínhamos estabilidade financeira, ela trabalhava como tradutora free-lance e seu pai era um homem amargurado, abandonado pela esposa e que via a vida se esvaindo enquanto media areia num depósito de material de construção; eu era um caipira órfão que me sustentava com as parcas rendas de uma criação de cabras, galinhas e algumas vacas leiteiras de um sítio recebido de herança de meus pais. Um sítio que era considerado pela população como lugar amaldiçoado – a cem metros da única casa da propriedade, uma edificação de dois andares, velha, de madeira, grande e sombria, havia uma imensa árvore centenária, esgalhada, com a terrível fama de atrair pessoas desesperadas. 

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Colocação De Produtos - Chuck Palahiuk



Ao Senhor Kenneth MacArthur

Gerente da Corporate Communications

Kutting-Blok Knife Products, Inc.

Prezado Senhor MacArthut,

Só para esclarecer, vocês fabricam uma faca maravilhosa. Uma faca excelente.

A Missa Das Sombras - Anatole France



Eis o que o sacristão da igreja de Santa Eulália, emNeuville-d'Aumont, me contou debaixo da latada doCavalo-Branco, numa bela noite de verão, bebendo uma garrafa de velho vinho, à saúde de um morto muito abastado, que ele havia enterrado honrosamente naquela manhã mesma, sob um tecido cheio de belas lágrimas de prata.

"Meu finado e pobre pai (quem fala é o sacristão) foi, em vida, coveiro. Era de humor agradável, e isso sem dúvida decorria de sua profissão, porque se tem reparado que as pessoas que trabalham nos cemitérios possuem espírito jovial. A morte não os atemoriza absolutamente; jamais se preocupam com ela. Eu, que lhe estou falando, senhor, penetro num cemitério, à noite, tão serenamente quanto no caramanchão do Cavalo-Branco. E se, por acaso, encontro um espectro, não me inquieto absolutamente com isso, porque reflito que ele pode perfeitamente ir cuidar de seus negócios, da mesma forma que eu dos meus. Conheço os hábitos dos mortos e seu caráter. Sei a tal respeito coisas que os próprios sacerdotes ignoram. E o senhor ficaria surpreso se lhe contasse tudo que tenho visto. Mas, nem todas as verdades são próprias para serem contadas, e meu pai, que, todavia, gostava de narrar histórias, não revelou a vigésima parte do que sabia. Em compensação, repetia muitas vezes as mesmas narrativas e, ao que eu saiba, relatou bem umas cem vezes a aventura de Catarina Fontaine."

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Na Colina (Final)

(Este post está dividido em duas partes. Clique aqui para ler a primeira parte.)

Contemplando o significado da inscrição, mais uma vez ele ficou imóvel, enquanto o pedido macabro de desculpas começava a perturbá-lo levemente. Ou a região tinha sido um centro de guerra, tendo  anteriormente estabelecido outro clã, ou talvez os habitantes originários da colina compartilharam os mitos e superstições com seus descendentes modernos na aldeia logo abaixo.

No começo, o barulho não tinha sido inteiramente filtrado em sua consciência. Foi só quando repetida em um ritmo irregular que sua mente reconheceu sua natureza. Ainda de frente para a parede e de costas para o salão da igreja, o frio que tinha experimentado na rua voltou a se arrastar por seus braços. Seu corpo tremia por causa da temperatura que estava abaixando em ritmo alarmante, seu hálito podendo ser vistos em pequenas nuvens nervosas à frente de seu rosto. Os pelos de John se arrepiaram com o som próximo de um pé arrastando uma pedra no chão e lentamente seguido por outro. Mas quem estaria em tal lugar além dele? Era óbvio não ser nenhum dos moradores, não com suas superstições, advertências e presságios sobre a encosta.

Os passos pareciam mais perto, e com sua confiança diminuindo, os pensamentos de John estavam focados apenas em fugir. Enquanto o som aumentava, ameaçadoramente próximo, estava claro que teria que enfrentar seja lá quem fosse para chegar até a porta.Não havia mais o que fazer, teve que empurrar para o lado o medo que tomava conta dele. Lentamente, ele se virou para ver quem estava atrás dele Por um momento ele achou que enfrentaria um dos rostos severos que tivera imaginando, mas o salão estava desprovido de vida, vazio, mas o som de passos na pedra fria, como lixa sobre a pele, ainda preenchiam o ar.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

O Rei Peste - Edgar Allan Poe



Por volta da meia-noite de um dia do mês de outubro, durante o cavalheiresco reinado de Eduardo III, dois marinheiros pertencentes a tripulação do Free and Easy (Livre e Feliz), escuna de comércio que trafegava entre Eclusa (Bélgica) e o Tâmisa, e então ancorado neste rio, ficaram bem surpresos ao se acharem sentados na ala duma cervejaria da paróquia de Santo André, em Londres, a qual tinha como insígnia a tabuleta dum “Alegre Marinheiro”. embora mal construída, enegrecida de fuligem, acachapada de todos os outros aspectos, semelhante às demais tabernas daquela época, estava, não obstante, na opinião dos grotescos grupos de freqüentadores ali dentro espalhados, muito bem adaptada a seu fim.

Dentre aqueles grupos, formavam nossos dois marinheiros, creio eu, o mais interessante, se não o mais notável.

O que parecia mais velho e a quem seu companheiro se dirigia, chamando-o pelo característico apelido de Legs (Pernas) era também o mais alto dos dois. Mediria talvez uns dois metros e dez centímetros de altura e a inevitável conseqüência de tão grande estatura se via no hábito de andar de ombros curvados. O excesso de altura era, porém, mais que compensado por deficiências de outra natureza. Era excessivamente magro e poderia, como afirmavam seus companheiros, substituir, quando bêbedo, um galhardete no topete do mastro, ou servir de pau de bujarrona, se não estivesse embriagado. Mas essas pilhérias e outras de igual natureza jamais produziam, evidentemente, qualquer efeito sobre os músculos cachinadores do marinheiro. Com as maçãs do rosto salientes, grande nariz adunco, queixo fugidio, pesado maxilar inferior e grandes olhos protuberantes e brancos, a expressão de sua fisionomia, embora repassada duma espécie de indiferença intratável por assuntos e coisas em geral, nem por isso deixava de ser extremamente solene e séria, fora de qualquer possibilidade de imitação ou descrição. 

Dagon - H. P. Lovecraft



Escrevo isso debaixo de uma tensão mental considerável já que esta noite poderei não estar mais vivo. Se um centavo e no final de meu suprimento da droga que, só ela, consegue tornar minha vida tolerável, já não consigo suportar a tortura e irei atirar-me dessa janela de sótão na rua esquálida lá em baixo. Não pensem que minha dependência da morfina tenha-me tornado um fraco ou degenerado. Quando houverem lido estas páginas rabiscadas às pressas, poderão imaginar, mesmo sem nunca perceber plenamente, por que preciso do olvido ou da morte.

Foi num dos trechos mais abertos e pouco freqüentados do vasto Pacífico que o paquete onde eu era comissário de bordo foi capturado pelo vaso de guerra alemão. A grande guerra estava, então, em seu início, e as forças marítimas do bárbaro ainda não haviam mergulhado por completo em sua posterior degradação. Sendo assim, nossa embarcação foi tomada como legítima presa, enquanto nós, membros de sua tripulação, fomos tratados com toda a equidade e consideração que nos eram devidas como prisioneiros navais. Era tão liberal, de fato, a disciplina de nossos captores, que cinco dias depois de nos tomarem, consegui escapar, sozinho, num pequeno barco equipado com água e provisões para muito tempo.

Quando enfim me vi livre e à deriva, não tinha muita noção de minha localização. Como nunca havia sido um navegador experiente, eu só podia imaginar, vagamente, pelo sol e as estrelas, que estava um pouco ao sul do Equador. Da latitude eu nada sabia, e não havia ilha nem linha costeira à vista. O tempo manteve-se firme e durante dias sem conta eu vaguei sem destino debaixo de um sol escaldante, esperando a passagem de algum navio ou ser atirado às praias de alguma terra inabitável. Mas não surgiu navio nem terra e comecei a me desesperar em minha solidão sobre a ondulante vastidão de interminável azul.

sábado, 7 de setembro de 2013

Na Colina (Parte 1)

Os acontecimentos dos últimos dias têm tanto abalado minha compreensão do mundo, quanto me deixado sem disposição e perplexo. No entanto, eu sinto que tenho que organizar esses eventos na minha mente, e sou obrigado a estruturar as terríveis coisas que eu vi para que assim eu as entenda melhor, para que minha mente tenha talvez um descanso - uma necessidade de enumerar tudo que aconteceu.

Foi totalmente por acaso que conheci John R---. Era primavera, e os primeiros açafrões estavam saindo bem contra os últimos resquícios de gelo que o inverno havia produzido. Eu estava em pesquisa para um artigo que estava escrevendo para uma publicação que era, digamos assim, mais do que respeitável, quando me vi à mercê durante a noite em uma pequena aldeia das montanhas.

Todo o calvário tinha sido frustrante e no mínimo cansativo. Supostamente, eu deveria estar de volta a Glasgow naquela mesma noite para digitar minhas anotações e espantar a neblina que vinha acompanhando minhas tentativas de escrita. Estar, em uma pequena vila com apenas uma rua e um pub (que também era uma pousada), o qual parecia não ter sido redecorado desde a idade das trevas, não era minha ideia de conforto caseiro; especialmente depois de algumas semanas de viagem constante, entrevistas intermináveis, e mais de uma noite sem descanso em uma cama suja ou café da manhã.

A Tumba - H. P. Lovecraft



Ao relatar as circunstâncias que conduziram ao meu confinamento neste asilo de loucos, tenho consciência de que minha posição atual criará dúvidas naturais acerca da autenticidade de minha narrativa. É grande infortúnio o fato de que o grosso da humanidade seja limitado demais, em sua visão mental, para pesar com paciência e inteligência esses fenômenos isolados, vistos e sentidos apenas por uma minoria psicologicamente sensível, os quais jazem fora de toda experiência comum. Homens de intelecto mais amplo sabem que não existe nenhuma distinção precisa entre o real e o irreal; que todas as coisas aparecem como tais apenas em virtude dos delicados meios psíquicos e mentais de cada indivíduo, por meio dos quais nos tornamos conscientes delas; mas o materialismo prosaico da maioria reputa como loucura os lances de visão superior que perfuram o véu comum do empirismo óbvio.

Meu nome é Jervas Dudley, e desde a mais tenra infância tenho sido um sonhador e um visionário. Rico para além das necessidades de uma vida comercial, e de um temperamento inapto para os estudos formais e o recreio social daqueles com quem me relaciono, tenho lidado desde sempre em reinos que não pertencem ao mundo visível, passando minha juventude e minha adolescência debruçado sobre livros antigos e pouco conhecidos e a percorrer os campos e bosques das cercanias de meu lar ancestral. Não creio que o que li nesses livros ou vi nesses campos e bosques fosse exatamente o que os outros rapazes leram e viram ali, mas sobre isso preciso falar pouco, pois que discorrer mais detalhadamente apenas confirmaria essas calúnias cruéis acerca de meu intelecto que às vezes ouço sussurrarem os atendentes furtivos que me rodeiam. Basta-me relatar os eventos, sem analisar as causas.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Silêncio - Edgar Allan Poe

Escuta - disse o demônio, pousando a mão sobre a minha cabeça. - O país de que te falo é um país lúgubre, na Líbia, às margens do rio Zaire. E ali não há repouso nem silêncio. As águas do rio, amarelas e insalubres, não correm para o mar, mas palpitam sempre sob o olhar ardente do Sol, com um movimento convulsivo. De cada lado do rio, sobre as margens lodosas, estende-se ao longe um deserto sombrio de gigantescos nenúfares, que suspiram na solidão,erguendo para o céu os longos pescoços espectrais e meneando tristemente as cabeças sempiternas. E do meio deles sai um sussurro confuso, semelhante ao murmúrio de uma torrente subterrânea. E os nenúfares, voltados uns para os outros, suspiram na solidão. E o seu império tem por limite uma floresta alta, cerrada, medonha!

Lá, -como as vagas em torno das Híbridas, pequenos arbustos agitam-se sem repouso, contudo não há vento no céu! - e as grandes árvores primitiva oscilam continuamente, com um estrépito enorme. E dos seus cumes elevados filtra, gota a gota, um orvalho eterno. A seus pés contorcem-se num sono agitado, flores desconhecidas - venenosas. E por cima das suas cabeças, comum ruge-ruge retumbante, precipitam-se as nuvens negras a caminho do ocidente, até rolarem as cataratas para trás da muralha abrasada do horizonte. E nas margens do rio Zaire há repouso nem silêncio.Era noite e a chuva caía enquanto caía, era água mas quando chegava ao chão era sangue! E eu estava na planície lodosa, por entre os nenúfares, vendo a chuva que caía sobre mim. E os nenúfares voltados uns para os outros suspira na solenidade da sua desolação.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Horror No Museu - H. P. Lovecraft

Foi apenas curiosidade o que levou Stephen Jones ao Museu Rogers pela primeira vez. Alguém lhe falara a respeito do estranho lugar subterrâneo na Southwark Street, do outro lado do rio, onde criaturas de cera muito mais horrendas que as piores efígies do Madame Tussaud estavam expostas; e num dia de abril ele resolveu entrar para conferir que tipo de desapontamento iria ter. Curiosamente, não se desapontou. Afinal, alguma coisa diferente e notável estava ali. Decerto, os velhos lugares-comuns sangüinários não poderiam faltar: Landru, Doutor Crippen, Madame Demers, Rizzio, Lady Jane Grey, infindáveis vítimas da guerra e da revolução, e monstros como Gilles de Rais e o Marquês de Sade; mas também outras coisas que aceleraram sua respiração e o fizeram permanecer até ouvir o toque de fechar. O homem que tinha montado aquela coleção não poderia ser um charlatão ordinário. Havia imaginação, e até um toque de genialidade doentia, em algumas das peças.

Mais tarde ele se informou sobre George Rogers. O homem tinha sido da equipe do Tussaud, mas algum problema ocorrera que resultara em sua demissão. Ouviram-se rumores acerca de sua sanidade mental e notícias sobre suas loucas formas de adoração secreta; embora, finalmente, o sucesso de seu próprio museu no porão acabasse embotando o gume de algumas críticas, ao mesmo tempo em que aguçava a ponta insidiosa de outras. Teratologia e iconografia do pesadelo eram seus passatempos; e ele teve mesmo a prudência de alojar discretamente algumas de suas piores efígies numa alcova especial, destinada somente aos adultos. Foi essa alcova que tanto fascinou Jones. Havia coisas híbridas e disformes que só a fantasia seria capaz de gerar, moldadas com arte diabólica e coloridas de um modo horrivelmente realístico.

domingo, 1 de setembro de 2013

Quando Os Anjos Não Querem Voar

Quando desliguei o telefone, a minha vontade era apenas de chorar. Chorar como se minhas lágrimas pudessem lavar minha alma, meus pecados, minha tristeza. Chorar como se o próprio Deus tivesse me pedido para afogar de novo o mundo sob um dilúvio, desta vez proveniente de minhas lágrimas.

Quem estava do outro lado da linha era meu pai. Ele é zelador em um colégio de ricaços aqui em São Paulo. Graças a isso, eu e meu irmão tivemos educação de primeira classe quase que a custo zero. Ele havia ligado porque haviam problemas na escola, onde continuava trabalhando, mesmo depois de aposentado.

O problema todo tinha a ver com pessoas que eu conhecia. Dona Lucinda havia sido minha professora de educação artística. Foi uma das professoras que mais me influenciou pela vida toda, um ser humano fantástico. Só tinha um probleminha: fumava feito uma chaminé. Fora isso, e muito mais importante que isso, era um ser humano maravilhoso.