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Contemplando o significado da inscrição, mais uma vez ele ficou imóvel, enquanto o pedido macabro de desculpas começava a perturbá-lo levemente. Ou a região tinha sido um centro de guerra, tendo anteriormente estabelecido outro clã, ou talvez os habitantes originários da colina compartilharam os mitos e superstições com seus descendentes modernos na aldeia logo abaixo.
Ele não replicou muito, só acenou
com a cabeça em um relutante acordo.
No dia seguinte despertei pela
manhã com um objetivo único. Enquanto eu tinha que ir para casa e terminar meus
afazeres, o ônibus não partiria até o fim da tarde, o que me deixava com
bastante tempo à persuadir John de ir comigo a um lugar um tanto dramático: A
colina. Eu sabia que se eu voltasse sem nenhuma dessas estranhas experiências,
talvez ele esqueceria toda essa superstição louca que os moradores tinhas
implantado nele, e iria embora de ônibus comigo. Tenho de confessar que também
estava totalmente intrigado pela ideia do lugar e, mesmo que eu não tivesse
dúvidas que as experiências de John
fossem ilusões, senti que poderia tirar um artigo dali, possivelmente
até uma história. Como escritor, essas oportunidades raramente eram dadas de
bandeja.
"Deixe ele meu filho, você não pode o ajudar!" ele gritou, conforme mais dois homens se esforçavam para me conter.
Em um impulso forcei meu cotovelo para trás e acertei o senhoril, me soltei e em uma corrida desesperada derrubei os outros dois homens enquanto subia a escada. Seguia os agoniados gritos até o quarto de John. A porta estava trancada. Respirei fundo e comecei a arrombar a porta com meu ombro, batendo, batendo e batendo, sentindo ela ceder. A cada empurrão eu ouvia o gaguejar interrompido de alguém lá dentro , como em um choro. Finalmente, a porta cedeu e eu pude entrar no quarto.
Por um momento testemunhei algo que se parecia com um homem, ou pelo menos algo que um dia foi vivo. Escurecido e queimado, virou a cabeça para me olhar - Não posso dizer se ele chegou a me ver, uma vez que não tinha olhos. Em seus braços estava o amassado sem vida corpo de John R---.
O quarto tomou uma aparência aquosa e volátil. Não sei se foi a extensão dos meus esforços ou apenas a aproximação daquele ser grotesco, mas um enjoo tomou de mim, atravessando meu estomago e, enquanto eu perdia a consciência, eu chorava em desespero.
Meu lar parece estar a milhões de
quilômetros de distância, mas sei que estarei lá em breve, para minha cama, um
mundo totalmente distante desse em que presenciei os eventos recentes; Quem
sabe lá eu consiga entender melhor essa loucura. Espero chegar lá em algumas
horas, embora o ônibus esteja um pouco atrasado...
Contemplando o significado da inscrição, mais uma vez ele ficou imóvel, enquanto o pedido macabro de desculpas começava a perturbá-lo levemente. Ou a região tinha sido um centro de guerra, tendo anteriormente estabelecido outro clã, ou talvez os habitantes originários da colina compartilharam os mitos e superstições com seus descendentes modernos na aldeia logo abaixo.
No começo, o barulho não tinha
sido inteiramente filtrado em sua consciência. Foi só quando repetida em um
ritmo irregular que sua mente reconheceu sua natureza. Ainda de frente para a
parede e de costas para o salão da igreja, o frio que tinha experimentado na
rua voltou a se arrastar por seus braços. Seu corpo tremia por causa da
temperatura que estava abaixando em ritmo alarmante, seu hálito podendo ser
vistos em pequenas nuvens nervosas à frente de seu rosto. Os pelos de John se
arrepiaram com o som próximo de um pé arrastando uma pedra no chão e lentamente
seguido por outro. Mas quem estaria em tal lugar além dele? Era óbvio não ser
nenhum dos moradores, não com suas superstições, advertências e presságios
sobre a encosta.
Os passos pareciam mais perto, e
com sua confiança diminuindo, os pensamentos de John estavam focados apenas em
fugir. Enquanto o som aumentava, ameaçadoramente próximo, estava claro que
teria que enfrentar seja lá quem fosse para chegar até a porta.Não havia mais o
que fazer, teve que empurrar para o lado o medo que tomava conta dele.
Lentamente, ele se virou para ver quem estava atrás dele Por um momento ele
achou que enfrentaria um dos rostos severos que tivera imaginando, mas o salão
estava desprovido de vida, vazio, mas o som de passos na pedra fria, como lixa
sobre a pele, ainda preenchiam o ar.
John arfou quando viu algo se
mexendo no canto de seu olho. Virando-se rapidamente para a porta escurecida
que levava até o subsolo, a cabeça de uma figura indecifrável se mexia conforme
seu corpo se erguia a cada passo vacilante. O terror correu por suas veias, a
ponto que sua racionalidade derreteu de tal forma que só o puro instinto
prevalecia. Ao que desatou a correr, pulando da plataforma deixando o altar e a
inscrição para trás, ele sentiu um medo profundo romper em suas entranhas. Tropeçando
quando aterrissou, o impacto desalojou mais detritos do teto, fazendo com que
pedaços grandes de pedra se despedaçassem
no chão da igreja, uma não certou a cabeça de John por poucos
centímetros.
A saída estava próxima e seus
pensamentos fervilhavam enquanto tropeçava por pilhas de escombros e resíduos
esquecidos, a pele morta da construção caía sem remorso. Por um momento sentiu-se
cercado, pressionado por um homem de batina, pregando sobre o pecado e o mal
antigo enquanto a congregação miserável e diminutiva permanecia amontoada, com
medo do que estava por perto.
Com os pés se arrastando entre a
sujeira e poeira do chão, a claridade mental de John retornava e começou a
escalar uma grande pilha de madeira quebrada com pedras - a saída para a
segurança do outro lado - a curiosidade acalmou seus nervos por um segundo. O
temor que sentia por dentro o dizia para continuar, ir para longe daquele
lugar, mas a necessidade de saber era implacável: Ele precisava ver. Respirando fundo, se virou
cautelosamente em direção do altar, vagarosamente apontando a luz de seu
celular à escada escura. O ar no salão estava ficando mais gelado, o respirar
apavorado de John claramente visível sob a luz fraca. A escuridão parecia
enevoar sua visão, mesmo assim, o que conseguiu decifrar era inconfundível. Um
figura alta estava de pé na frente da portinha, mas uma profunda sensação que
toda a humanidade dele tivesse sido pervertida e torturada emanava deste. O
homem e a criatura silenciosamente trocaram olhares por um longo tempo. Em
seguida uma sequencia rouca de silabas saíram da boca do ser, uma língua a
muito tempo esquecida e, enquanto sua definição precisa iludia o entendimento
de John, o desdém com que falava não fazia.
A figura na porta se moveu para
frente intimidando com seus movimentos sombrios, John gritou em horror,
agarrando-se a esmo nos escombros na tentativa de chegar ao topo e, em seguida,
fazer seu caminho até a porta. Agora ele não ligava mais em fazer silêncio,
seus movimentos desesperados ecoando pelo salão, muitas pedras começavam a cair
do teto novamente. Quando chegou no topo do monte, olhou para cima só para ver
uma pedra maior que sua própria estatura vindo em sua direção. Pulando por sua
vida, ele caiu do outro lado. Enquanto rolou pelo chão, uma dor lancinante fisgou-lhe
no lado do corpo. Batendo contra o chão de pedra, o impacto deixou-o atordoado
alguns minutos. Cambaleando enquanto se levantava ele olhou para baixo e
recolheu-se em horror. Um grande pedaço de madeira tinha entrado vários
centímetros na altura de suas costelas. O sangue jorrava da ferida quando quase
que instintivamente puxou o pedaço de madeira, ela relando contra suas
entranhas antes de finalmente ser removida.
Ele deixou escapar um grito de
angustia, e ao mesmo tempo se virou para trás por ter ouvido outro barulho. A
dor em seu lado era agonizante, mas a visão que estava tendo era muito pior do
que qualquer sensação. A figura na porta se arrastava em sua própria barriga,
rastejando-se em uma velocidade impossível sobre os escombros em direção à
John. O corpo era enegrecido, o resto coberto por um manto branco, deslizando
com facilidade sobre a superfície irregular.
Tropeçando em estado de choque,
John estava paralisado de medo. Em seguida, a realidade o tomou; a saída estava
perto. Mancando em direção à porta, ele espremeu seu corpo contra a abertura
indo em direção à luz. A porta pressionou e cutucou a ferida na costela,
fazendo a dor se espalhar por todo seu abdômen. Com um ultimo empurrão ele
gritou, a força do momento fazendo-o cair no gramado do lado de fora. Olhando
para cima através da abertura olhou a figura sepultada com sua cara sarcástica
do lado de dentro, seu braço esticado, cuspindo desprezivelmente e grunhindo
ensurdecedoramente para o por do sol.
John não perdeu tempo olhando a
criatura; levantou cambaleantemente mais uma vez, sua mão agora estava
encharcada de sangue estancando o sangue na ferida enorme nas costelas. Saindo
daquele lugar o mais rápido que pode, deixando o terreno da igreja pra trás,
ele tinha certeza que podia ouvir vozes vindo de dentro enquanto fugia - os gritos e protestos do
clero e da congregação que a muito tempo tinham se ido, zombando, magoados e
desprezando-o.
Na pressa, tinha perdido o
controle de sua direção, pois não era familiarizado com aquele ambiente. No aperto
do pânico, ele mancou o mais rápido que pode, mas a desorientação o levou e,
antes de saber como ou porque, viu-se rodeado por um labirinto de lápides
quebradas e derrubadas.
Tonto e com falta de ar, ele não
ligava mais para aonde estava, contanto que conseguisse deixar a igreja e seu
"funcionário" para trás. Depois de recuperar o fôlego, começou a
avaliar o velho cemitério; algumas grandes e iminentes lápides enquanto as
outras estavam derrubadas e arruinadas. Então, como se sofrendo os efeitos de
um veneno desconhecido, o mundo começou a girar ao se redor e tentando
respirar, as pedras assumiram formas sinistras e ameaçadoras, elevando-se, bloqueando
a luz, olhando com raiva para ele de cima. Agora não era um cemitério onde ele
se encontrava e sim um enorme anel de enormes pedras deformadas. Eles tinham
enfrentado muitas tempestades - anciões e esquecidos - muito antes do primeiro
tijolo fosse colocado naquela igreja adulterada.
Sentindo-se obrigado a, de alguma
forma, se aproximar de um deles, estendeu a mão, tocando a superfície coberta de
musgo. Flashes de um passado escondido agora invadia sua mente, enquanto
sentia-se dominado por uma fraqueza. Sua visão nublou, o mundo girava e uma náusea
repentina cobriu seus sentidos, um que era tão forte que o obrigou cair de
joelhos, e embora tenha lutado bravamente contra, em segundos ele desmoronou no
chão, sua ferida pulsando a cada batida de seu coração. Deitado em suas costas
olhando para cima, o céu parecia pulsar e tudo em sua volta parecia destorcido,
como se ele estivesse separado do mundo. John perdeu os sentidos.
Ele acordou com o silêncio da
terra. Tufos de grama quebrada tocavam seu rosto enquanto o vento soprava em
várias direções. O céu estava negro, enquanto nada vivo se mexia. John não
sabia quanto tempo tinha estado inconsciente, mas o cobertor de estrelas acima
não deixavam duvidas que havia sido por algumas horas. O enjoo continuava,
mesmo que não tão forte, mas a ferida em seu lado ainda vazava sangue. Ficando de pé, ficou claro que seu corpo
ainda estava no efeito de seja lá o que tinha naquela colina, mas de certa
forma ele já estava se acostumando com isso; pelo menos a um ponto que conseguisse ganhar postura para achar um jeito de fugir.
***
A sorte ficou do seu lado
enquanto a lua estava presente logo acima de sua cabeça, mesmo que só uma fina
parte em forma crescente. Ela o dava luz o suficiente para avaliar o estranho
mundo e as formas que o rodeava. Ele não tinha certeza se estava aonde tinha
desmaiado, pois lembrava vividamente das lápides, que não estavam mais ali. De
pé, com a mão em cima da ferida tentando estancar o sangue, realizou algo
assustador. John achou difícil de converter em simples palavras o que era, mas
descreveu como "As leis da natureza mudaram". Nada parecia fazer
sentido, por um momento não sabia quem ele mesmo era, porque estava lá, e o que
estava fazendo-o se sentir tão mal. Ele parecia ter mantido o conhecimento da
montanha e memórias sobre a igreja, mas seus pensamentos estavam embaralhados e
desconexos. Momentos repentinos de identidade eram substituídos pela confusão.
Mas, independentemente da aflição, um continuava; seu instinto insistia que
precisava sair daquele lugar imediatamente. Mas neste frágil estado mental, não
conseguia distinguir qual caminho levava para a vila e qual caminho o levaria
em direção do o cume, para o que ou quem estivesse lá. A intoxicação sensorial
foi uma experiência diferente de qualquer outra - o mundo desconhecido.
Um cheiro horrível preencheu o
ar. Se era seu próprio vômito ou o enjoo brincando com seus sentidos, não
sabia, mas havia algo a mais naquele fedor. Um cheiro de chorume misturado com
o inquietante odor de cabelo queimado. Começou a ficar tão forte que os olhos
de John começaram a arder, o que ajudou a desorientá-lo. Apesar de seus olhos
estarem cheios de lágrimas e o mundo parecia totalmente desconexo, agora ele
sentia algo que só pode descrever como uma "presença". O fedor mofado
cresceu e John tossiu. A resposta ao barulho foi diferente, e mesmo que
acreditasse que conhecer a mente de alguém era impossível - algo se aproximou
com muita malicia e ódio junto de seus companheiros.
O medo se tornou um objeto
passageiro enquanto andava em silêncio entre árvores sombrias e por entre o
capim selvagem esperando encontrar uma saída. Cambaleando atrapalhado pela
escuridão, a dor em sua ferida e os
pensamentos de morrer na colina, nunca mais ver os que amava ficaram cada vez
mais evidentes. Por um momento achou que iria desmaiar novamente, mas enquanto o
enjoo se intensificava, agora era acompanhado pelo som de grama morta e flora
seca sendo pressionadas, como se algo se arrastasse no mato perto dali. A visão
de John estava tão limitada que não conseguia distinguir qual caminha levava
pra frente ou para trás, e em breves momentos de clareza, sentia repulsa ao
pensar em voltar à igreja, as pedras ou as lápides - inseguro de se elas eram
ou não de verdades. Estava totalmente perdido e, algo que chamava a horrível
colina de casa, se aproximava.
Ficou Imóvel.
Mas nem silêncio ou a escuridão
podiam acobertá-lo. Nenhum campo de esquecimento poderia fornecer obscuridade para
se esconder de uma perversidade tão velha quanto a terra, que agora perseguia
um homem que antes riu na cara da superstição e do mito. O ar ficou mais denso e
os finos riscos de luz que vinham da lua iam diminuindo, como se estivesse
sendo sugado para as profundidades ta terra. Em seguida, nada. O som da grama
sendo quebrada e pressionada parou, o lugar parecendo ser insuportavelmente
desprovido de som. Esgotado mentalmente, John não tinha mais esperanças de sair
dali. A coisa estava por perto, seu respirar podia ser sentido no ar; sujo,
rançoso, algo que estivera vivo tempo demais, mas mesmo assim não tinha perdido
o desejo de causar dor e sofrimento. Em seguida, movimento. Folhas mortas
estalaram de baixo de seu peso, o mato alto que parecia ser tão impenetrável,
tão dominante, agora se dobrava e quebrava a cada passo do ser. Agora o único
pensamento que John tinha era de se esconder. Vagarosamente, respirando mais
baixo, ofegando silenciosamente, afundou na grama; aterrorizado.
A presença estava mais perto e,
na escuridão, ele achou que as vezes conseguia enxergar uma vaga silhueta de
algo que andava a esmo, fora do alcance. O circulava lentamente por ali, chegando
perto e depois se afastando de novo, como se procurasse meticulosamente pelo
chão. Então, finalmente, o som de seus passos vagos foram se distanciando
bastante, e depois pararam totalmente. John deixou escapar um suspiro de
alívio.
Então uma mão tocou seu rosto.
A sobrevivência tomou conta de si
e, com um grito de terror absoluto, ele rolou para o lado. Uma dor lancinante
percorreu por seu corpo, pois sua movimentação e o próprio peso fez com que sua
ferida fosse pressionada contra o solo. Um rugido baixo escapou de seja lá que
monstruosidade estava de pé a sua frente e então, sem saber para que lado
fugir, John se motivou por um novo impulso; ficando de pé em um pulo, correu
desjeitosamente em uma direção aleatória, esperando que, além de suas esperanças,
fosse levado embora daquela loucura. Aquele pesadelo.
Ele correu entre o mato e árvores
no breu da noite. Um fedor denso de podre e cabelo queimado cobria tudo,
provocando ondas de vômito enquanto corria. Por fim, ele sabia onde estava, um
lugar que tinha rezado para nunca mais ir. A igreja apareceu em sua vista,
impetuosa e destorcida à sua frente. Algo se precipitou entre as árvores atrás
e logo estaria em cima dele. Pelo menos agora ele sabia em que sentido correr,
indo em direção ao caminho que tinha subido mais cedo naquele mesmo dia, uma
trilha desgastada que o levaria para a tão prezada segurança. Mas o terreno
parecia artificial e desconhecido. A própria forma de "construção"
parecia ter sido forjada por alguém com más intenções. Ele tinha que continuar,
para se livrar de quem o perseguia. O caminho tinha que ser naquela direção!
Então, finalmente ele rompeu em
uma clareira. Seu coração afundou dentro do peito. Lá estava de novo a igreja,
mas de certa forma, parecia diferente. Na noite ela parecia possuir uma forma
mais sinistra e bizarra do que na luz do dia. Por um momento John imaginou a
estrutura não sendo feita de pedra ou concreto, e sim de videiras, barro e
madeira; retorcidos em direção ao céu.
O farfalhar de folhas podia ser
ouvido de perto enquanto tropeçava, ofegante por ar. A dor em sua ferida agora
era quase insuportável, cada passo acompanhado por uma sensação interna de
rasgamento. Forçado por seu perseguidor a ter que ver a igreja de novo, John se
deslocou o melhor que pode, cambaleando e mancando, fraco e exausto, entrou em
uma espessa rede de arbustos e espinheiros. Suas roupas ficaram presas enquanto
os galhos pontudos arranhavam seu rosto e braços. Não adiantava, ele não
conseguiria fugir. Olhando por cima do ombro, alguém estava claramente
atravessando os arbustos apenas alguns metros dali.
O medo corria pelas veias de John
enquanto o seu perseguidor o alcançava. Deixando escapar um grito de dor e
angustia, a coisa entre os ramos pareceu parar por um momento, observou-o
pleiteando por sua vida, suas mãos cortadas e rasgadas por espinhos. John se
agarrou no matagal a frente tentando escapar e, em seguida, para arrepia-lo até
os ossos, a figura atrás dele olhou e deixou escapar um gemido angustiante -
algo entre uma risada e um suspiro de satisfação. A coisa começou a se mover em
grande velocidade, rompendo por entre os espinho com facilidade, se aproximando
rapidamente.
Com um berro de dor e descrença,
John finalmente conseguiu se libertar do aperto dos espinhos, mas o desespero
ainda o assombrava. Lá estava novamente a
igreja, quase zombeteira, torcida e destorcida de um jeito que nenhum ser
humano conseguiria desenvolver. Vacilante, com a pouca força que ainda tinha,
ele passou pela igreja mais uma vez enquanto seu agressor saia por entre as
árvores, se apressando em sua direção. John aumentou seu ritmo o máximo que
pode, o que não era muito. O céu estava aberto, e líquido era derramado sobre a
igreja, que logo se esparramara no terreno, ficando encharcado e alagado.
A força de John diminuiu quando
caiu de joelhos, admitindo estar derrotado. Então, a salvação. De longe, uma
luz brilhava. Uma que irradiou e rompeu entre a mata quase impenetrável. Algo
para incentivá-lo a prosseguir. A ter esperança. Um fluxo a seguir, uma luz de
fora da terrível colina. Com seu perseguidor se aproximando, arrastando seu
corpo entre o gramado e a escuridão, uma última onda de energia despertou John
de seu terrível destino. A visão da luz e da vida reacendeu um pequeno
resquício de esperança que ainda restava. Ele urrou em aflição enquanto se
levantava, a chuva caindo sobre sua cabeça, encharcando-o até os ossos. Mas
isso não importava. Tudo que importava
era a luz, e a segurança que ela prometia. Mancando o mais rápido que
podia, ele entrou na mata entre os cipós
e galhos da floresta, o medo sobrepondo qualquer dor que sentia enquanto os
espinhos cortavam sua pele.
No entanto ele continuava, e a
luz começou a ficar cada a vez mais forte; vibrante e encorajadora. Estava
claro agora que ele estava indo ladeira abaixo, pois a dinâmica de sua
trajetória o fazia tropeçar e cair várias vezes. Também fazia a velocidade dele
aumentar consideravelmente. Memórias que não eram dele começaram a aparecer na
sua cabeça novamente, pensamentos de raiva e ódio preenchiam sua visão; a
imagem da igreja nunca vazia, mas ainda assim desprovida de vida - o padre com
as mãos erguidas, inclinando-se por cima das cabeças da congregação.
A desorientação estava o
preenchendo, e o cheiro de cabelo queimado se espalhou pelos arredores
novamente. Apesar de confuso, podia ouvir os passos de seu perseguidor em
velocidade crescente, no entanto, parecia mais agitado do que antes. Deveria
estar com raiva, ou até mesmo frustrado. John sentiu-se enjoado pelo próprio pânico,
o sangue escorrendo de sua ferida desenfreadamente. Assim que a luz estava mais
próxima; com a promessa da redenção, segurança e a fuga da escuridão, ele voou ladeira
abaixo quando pisou em falso na lama e grama molhada, caindo em direção ao solo.
Dor, cansaço e desesperança reinaram soberanamente em seu corpo já golpeado e
ferido, que agora havia pousado em cima de um grande tronco de árvore tombado.
Os passos se aproximavam, e
enquanto os ouvia, John pensava como sua vida acabaria por aquele que chamava a
encosta e lar.
"Vamos, filho. Levante-se!
Levante-se!" uma voz gritou da escuridão, quase abafada pelo som de quebra
de galhos e folhas velhas que se aproximava.
O mundo parecia deformado, mas
quando quase estava por perder sua consciência uma vez mais, a claridade
retornou e John percebeu onde estava. Seu corpo não tinha caído contra uma
árvore tombada, e sim contra o portão daquele lugar terrível.
Algo estava próximo. Aquela coisa
que estava o perseguindo pelo escuro, agora estava a apenas alguns metros de
distância.
"Mexa-se, ele está quase em
cima de você!" um grito soou do escuro, e John reconheceu como a familiar
voz de Dale.
Com uma última ação, a última
gota de vida que restava nele, John R. abriu o portão, caindo de rosto no chão
em uma poça na estrada.
Eu estava sentando paralisado; as
palavras fluindo de John, as vezes junto com uma gagueira persistente, mas
ainda assim com uma convicção e veracidade que achei difícil de ignorar, mesmo
com meu ceticismo. Este homem acreditava piamente que tudo aquilo que me
dissera era verdade. Dale, aparentemente, tinha ido o procurar, contra a
vontade de todos os outros moradores. Ele tinha, a muito tempo atrás, perdido
um filho e não queria que mais ninguém sucumbisse para a malevolência que aparentemente
que vivia na encosta. O senhorio, sendo um velho amigo do fazendeiro,
eventualmente concordou em os dois irem de carro até o pé da colina, esperando
que John seguiria a luz dos faróis e conseguisse ser o primeiro a sair de lá
vivo. Entretanto, não importava o quanto eles estavam dispostos a ajudar, nunca
iriam se quer tocar no portão nem cruzar a limiar do morro. John tinha que o
fazer sozinho, e ele o fez, quando o perseguidor estava quase o alcançando.
***
Me lembro de soltar um suspiro de
alivio assim que ele terminou de contar sua história e tomou seu último gole de
vinho de frente para a fogueira. Houve um momento de silêncio entre nós, e
percebi que o bar inteiro estava banhando em reticências ansiosas. Uma que era
quase palpável, como se os que estivessem lá quisessem falar, mas não tinham
coragem para o fazer.
Finalmente falei, tentando soar o
mais reconfortante o possível: "É uma história esplêndida, John, mas é
apenas uma história. Tenho certeza que há uma explicação racional para tudo
isso."
Ele abaixou a cabeça, olhando
para o chão.
"Se é só uma história, então
por que eu não posso ir embora?" ele disse, me olhando com uma expressão
meio amedrontada e meio desesperada.
"O que você quer dizer por
não poder ir embora?"
"Estou aqui faz três
meses!" ele gritou, "As vezes eu desejo que Dale apenas tivesse me
deixado por lá."
"John," Eu disse, me
inclinando e pousando minha mão em seu ombro, " Você pode ir embora quando
quiser".
Mas eu podia ver uma expressão de
descrença em seu rosto. Ele tinha sido consumido por seja lá quais mitos e
superstições que os moradores dali tinham enfiado-lhe goela baixo. Cheguei a
conclusão que sua mente estava corrompida. Claro que eu sentia que o senhorio e
os outros tinham apenas boas intenções, mas eu estava certo que uma explicação
convencional poderia vir a curar sua mente aflita.
"Estou indo para Glasgow
amanhã." Eu disse alegremente. "Porque não vem comigo? O ônibus
estará aqui pela tarde e nós podemos viajar juntos. Mas... Claro, eu tinha
esquecido, você está com seu carro. Por favor, não achei que eu estava pescando
uma carona."
Ri, mas John só meu olhava
tristemente, e então respondeu: " Meu
carro é um caso perdido, destruído."
"Sério? Espero que não seja
tão ruim assim... O que aconteceu?"
"Levei vários dias para me
recuperar de minhas experiências na colina", disse arrasado, "mas
quando melhorei, arrumei minhas malas, agradeci a Dale e ao senhorio e então
dirigi para fora do vilarejo. Depois de alguns kilometros uma chuva forte
começou a cair. A visibilidade estava terrível, mas eu queria ir embora logo.
Perdi o controle do carro e bati em uma árvore. Sobrevivi, mas o carro está
perdido."
"Bem, acidentes acontecem.
Pelo menos você está bem. O que acha de outra bebida?" Disse, me
levantando. John segurou meu braço com força.
"Não foi um acidente. Havia
outra coisa na estrada. Eu o vi lá. Um homem... Eu acho. Pelo menos parecia com
um homem. Eu virei o volante para desviar dele."
"Foi uma coisa boa. A última
coisa que você gostaria era de matar acidentalmente um morador local"
Minhas piadas mais uma vez não apaziguaram suas frustrações.
Eu me sentei de volta enquanto
ele me contava sua situação. Depois do acidente com o carro, que foi rebocado
de volta para a pousada por Dale, John tentou tudo que pode para sair dali. Toda
vez que tentava usar o ônibus local, acontecia um problema. O veiculo quebrava
ou talvez um deslizamento acontecia, bloqueando a entrada da vila - John até
afirmou que era por isso que eu tivera de passar a noite na vila aquela noite,
para pegar o ônibus no dia seguinte.
O homem era implacável. Por três
meses que estivera como convidado no "O Lorde de Dungorth", e não
importava o quanto tentasse, ele não conseguia atravessar os limites da vila.
Várias vezes ele tentou ir andando até a cidade mais próxima, mas em cada
ocasião era forçado a voltar por causa de uma tempestade perigosa e cruel que
chegava sem aviso prévio. Ele tentara telefonar pedindo ajuda, mas seu celular
nunca tinha sinal e enquanto usava o algum telefone local só ouvia estática. O mesmo acontecia se alguém tentava fazer uma
ligação no nome dele.
Mesmo que eu não conseguisse
explicar cada um daqueles acontecimentos, eu estava certo que uma série de
eventos racionais e ocasionais poderiam ser responsáveis por cada um. Era loucura que alguém obviamente tão
inteligente e articulado estivesse acreditando em tal insensatez. Eu,
genuinamente, sentia simpatia por aquele homem.
"Você é vítima de uma
profecia auto-realizada", eu disse, confiante.
"O que você quer dizer com
isso?" John perguntou.
"Eu já trabalhei em muitas
vilas como esta. Você vem para uma velha cidade do país com um terreno
assombrado. É como se fosse outro mundo distinto da vida moderna de Londres.
Então você é abastecido com paranoia. Um mito, em que os moradores acreditam em
uma parte de terra amaldiçoada. Absorvendo tudo isso, você tem o azar de bater
o carro em uma árvore e, antes que perceba, começa a acreditar na coisa toda.
Talvez você tenha até imaginado a pessoa na estrada. Talvez até mesmo todo o
conflito."
"E a colina?" perguntou,
obviamente intrigado com qualquer
possibilidade de fuga que pudesse ser eficaz.
"Provavelmente um efeito placebo de todas
as histórias que você ouviu. Isso ou, quem sabe, talvez você tenha comido algo
adulterado ou algum vírus que tenha feito você alucinar a coisa toda. Talvez
até exista um doido morando na igreja."
Estava óbvio que ele não estava
convencido, mas eu sentia que era meu dever levar aquela pobre alma para fora
daquela vila, de volta para Glasgow, onde ele poderia dar um jeito de ir para
casa. Eu já presenciara o estrago que crenças não fundamentadas podiam causar
em pessoas e comunidades, e sempre fiquei intimidado por isso. Eu só queria
ajudar.
"Amanhã nós pegaremos o
ônibus juntos e te pagarei uma bebida em Glasgow."
***
Antes de ir, falei com ele e
deixei claras minhas intenções. Ele suplicou que eu não fosse, que seu destino
não precisava ser meu. Mas depois de muito protesto ele aceitou o fato de que
eu não seria dissuadido e, relutantemente, concordou que se eu voltasse sem
nenhum fato sobrenatural, paranormal ou qualquer outro incidente, ele iria
embora comigo para Glasgow.
Depois de me dar as direções
certas, - as quais eu sabia que não conseguiria com nenhum morador - fiz meu
caminho até a suposta encosta maldita. Tenho de admitir que a primeira vez que
a vi, parecia um tanto... esquisita. Fora de lugar. Mas supus que isso fosse
apenas um efeito subconsciente do conto de John. O ambiente parecia ser
exatamente como ele descrevera. Pelo menos essa parte era verdadeira. A estrada
estava bloqueada por lixo e entulho, e acabei por encontrar o portão no pé da
montanha. Havia até uma mancha de sangue, certamente fazendo o fim da história
ser mais convencível. O pensamento de
que algum maníaco pudesse estar realmente lá em cima me fez recuar um pouco,
mas ele provavelmente teria se mudado depois de ser confrontado por Dale e
proprietário da terra. De qualquer modo, John, bastante ferido e abalado
conseguira escapar, então me sentia bastante confiante.
Não senti nada fora do comum
quando ultrapassei o limiar entre as terras, e mesmo que as árvores caídas e a
grama morta deixasse o ambiente meio decadente, fique surpreso por quão inocente
e banal parecia ser. Depois de subir o caminho que claramente havia sendo usado
a anos inúmeras vezes, cheguei no local que fazia lembrar a descrição de John.
E lá estava. Obscurecida do mundo
por conta de uma parede de folhagens, madeira podre e grama: A igreja. Eu fiquei surpreso pois pensava que tal
construção teria sido certamente parte das alucinações de John e admito que
comecei a me sentir um pouco nervoso por sua existência, e hesitei por um
momento antes de continuar. Fico envergonhado de confessar que, se a área não
estivesse iluminada pela luz do dia, eu teria considerado voltar. Mas eu não
voltei.
A igreja era fascinante, e no
mínimo, queria ver se era como John havia dito, com o altar intacto. Não era difícil
olhar lá dentro, embora me estremecesse
um pouco lembrando da descrição da porta parcialmente bloqueada por destroço,
mas esta estava bem aberta e sem obstáculos, e essa diferença fez com que eu
parasse mais uma vez. Entretanto, lá estava eu, no limiar, espiando. Era
exatamente como ele havia descrito; o chão estava coberto de destroços do
telhado, o altar logo mais a frente, uma inscrição - a qual eu não tinha mais
dúvida ser real, pois esta escrito realmente como John tinha dito - e uma porta
liberando para o subsolo, um destino desconhecido.
Você tem que entender que nunca
passou pela minha cabeça que algo sobrenatural realmente morava lá, essa ideia
era até cômica; mas eu começava a questionar minha segurança. Um ermitão ou um
louco recluso morando de baixo de uma igreja antiga não eram imagens ou
pensamentos que me enchiam de confiança.
"Olá? Tem alguém aí?" Gritei,
minha voz ecoando entre as vigas do teto.
Sem resposta, me repreendi por
ser tão paranoico e dei um passo à frente. Cuidadosamente andando entre os
entulhos, notei a um pouco sangue em um pedaço madeira quebrado que assumi ser
o de John. Então um pensamento clareou minha mente: talvez a madeira estivesse
contaminada de certa forma, e entrando pelo ferimento, em contato com o sangue
de John, causou todas as alucinações, pelo menos as que aconteceram depois.
Isso explicaria a desorientação.
O altar estava onde ele havia
dito que estaria. Percebendo que eu precisaria de uma prova de que estivera ali para botá-lo de volta nos
eixos, peguei meu celular e comecei a
tirar fotos do interior da igreja. A cada flash o salão se iluminava, e
enquanto isso minha mente se rastejava nas descrições de John sobre o padre
fervoroso e a congregação amedrontada sob a proteção da igreja - mas se
protegendo de que?
Me virando em direção a porta que
levava ao subsolo da igreja, senti meu coração acelerar só de olhar o lance de
escada de pedra, mas eu era obrigado a ir, mesmo que não por intenções
inteiramente generosas. Sim, eu queria mostras a John que não existia nada lá
em baixo, e que suas crenças que o amarravam sem amarras na vila eram
totalmente sem fundamento; mas eu também estava curioso em relação ao que jazia
lá embaixo. Porque essa igreja tinha um
andar subterrâneo? Seria uma catatumba? A curiosidade me envolveu e minha boca
se encheu d'água pela possibilidade de publicar um artigo descrevendo minha
descoberta arqueológica desconhecida, talvez com uma relíquia importante e
valiosa; talvez até duas.
Enquanto me aproximava da porta,
podia sentir o ar gelado vindo lá de baixo. Usando a luz de meu celular, acalmei
meus nervoso que começavam a me irritar, aproximando. Um lance de escada
estreito deslizava para o chão do andar abaixo. As paredes eram de um cinza
escurecido, e pareciam ter sido feitas e esculpidas com muito menos cuidado do
que o resto da igreja. Gritei mais uma vez, mas ninguém respondeu e assumi de
prontidão que o lugar estava abandonado. Enquanto descia, me surpreendi por
quão comprida a escada era de verdade, e quando cheguei ao final, conclui que
estava a, pelo menos, 15 metros abaixo da igreja. Pra mim, era muito estranho
que um andar ficasse tão abaixo da terra e me perguntei o propósito disso -
porque teriam os arquitetos, construtores ou seguidores da igreja escavado tão
fundo?
No último degrau, respirei fundo
e iluminei a porta que tinha ficado longe lá em cima. Depois, a luz azulada do
meu celular iluminou tudo em volta. O que vi me deixou extremamente perturbado;
um grande salão, com o chão cheio de trapos, pedras, e ossos humanos. Não
consegui distinguir quantos corpos tinham sido deixados lá para apodrecer, pois
eram demais. O are era muito gelado, e me senti congelado até a alma, não só
pelas pedras frias que me cercavam, mas pelo sentimento de tristeza que cobria
tudo. Era quase como se eu pudesse ver
as pessoas encolhidas, passando seus últimos momentos escondidos do sol. A primeira
impressão que tive, é que eles tinham morrido lá, apesar de eu não saber porque
eu estava tão convencido disso.
Tirando algumas fotos, entrei no
que somente podia descrever como... um túmulo gigante. Fui cuidadoso para não
mexer nos ossos, mas fico envergonhado em dizer que senti alguns quebrando
debaixo de meus pés. Para esquerda liderava até outra porta que levava até
outra câmara, e por mais que não quisesse perturbar a tumba mais do que já
havia perturbado, me sentia responsável de saber toda a história. Isso era, o
que mais havia lá em baixo.
Acima da porta havia um anjo de
pedra, esculpido a nível artístico, colocando-o em desacordo com a sala cheia
de ossos. Mas aquele rosto infantil vestia um sorriso largo. Não de felicidade
ou jovialidade, mas de zombaria e satisfação sadomasoquista. Apenas de olhá-lo
fiquei com um sentimento de asco, então rapidamente entrei no outro
compartimento para fugir de seu olhar.
Era um quarto grande, muito maior
do que o anterior. Pude dizer de cara que algo de grande importância para
aqueles que tinham construído a igreja ficara ali. As paredes eram adornadas
com lindos símbolos esculpidos, alguns cristãos, mas muitos de natureza que eu
não conhecia. No centro da sala jazia um bloco de pedra maciça de 1 metro de
diâmetro. Havia um grande buraco em seu lado. Na pedra estava a seguinte
descrição:
"Aqui jaz o pai. Amado por
alguns, odiado por muitos."
Enquanto eu refletia a respeito
do epitáfio, espiei pelo buraco. O túmulo estava vazio, mas fiquei feliz de ter
visto-o antes de entrar no quarto, ou poderia ter tropeçado e tomado um belo
tombo. Ficar preso lá em baixo com uma perna quebrada não era algo que eu
desejaria pra ninguém. A sujeira da sala era totalmente negra, parecendo que
ali fora um depósito de carvão, e a margem do buraco estava cercado de uma
pilha de sujeira. Presumi que ladrões de túmulo ou talvez aqueles que
"odiavam" o homem tinham roubado seu corpo há muito tempo.
O ar do locar estava começando a
me afetar intensamente. Cada inalada de ar era irregular e gelada, e o
desconforto era tanto que decidi que já havia visto o suficiente. Enquanto
tirando algumas fotos para documentar a tumba antes de ir, o flash da câmera do
celular mostrou algo em foco nítido no chão. Coberto em terra estava um livro
que se sobressaia do chão. Gentilmente tirando a poeira de cima dele com a mão,
cuidadosamente tirei do chão, colocando o livro em cima da tumba no meio da
sala.
A encadernação era antiga,
descamando de leve quando passei minha mão por cima. A capa era vermelha
escura, o qual não conseguia identificar o material que tinha sido feito,
falava de tempos antigos e histórias perdidas ainda importantes. No fundo eu
sabia que um item desses devia ser removido dali com cuidado e estudado por
especialistas, mas como escritor, minha paixão por histórias me obrigou a ver
do que se tratava. Abrindo-o, fiquei maravilhado. Era uma crônica. Relatos
escritos a mão da história da igreja, sua congregação e a colina em si. Um
pedaço de um povo esquecido.
Estava escrito em um tom confuso,
linguisticamente falando, sendo que as palavras eram uma mistura do antigo
Inglês Escocês e pedaços de um língua desconhecida por mim, uma que assumi ser
Celta ou Galês. Entretanto, as passagens em Escocês eu conseguia ler
tranquilamente. O que segue é uma memória solta do que estava escrito lá:
No século 15 um grupo de
refugiados vieram à essa área procurando um lugar que pudessem chamar de casa.
Os vales - ou planícies, como são conhecidos na escócia - eram inabitadas na
época, assim como uma estranha colina que era dominante na paisagem. O povo era
de um lugar chamado Dungorth, e tinham escapado
do proprietário das terras que comandava aquela região; fugindo de suas
perseguições, pois era um governador brutal e impiedoso que punia todos que não
seguiam suas crenças.
***
Em geral, não passavam da casa
das centenas, e enquanto os mais velhos queriam apenas se estabelecer nos
vales, um sacerdote importante entre eles alegava que para abençoar a terras, e
para assegurar que nenhum mal cairia sobre a comunidade, a colina devia ser
estabelecida primeiro - um farol de santidade lançando uma sombra de proteção
em todos abaixo. Enquanto alguns suspeitavam da fascinação do homem com o
lugar, ele era conhecido por sua bondade e por ser alguém cujo o julgamento era
confiável. Desanimados, os mais velhos começaram a seguir seu exemplo, como na
época era típico das pessoas serem tementes a Deus. Lá, naquele morro isolado e
sinistro, construíram um pequeno povoado, mas quase que imediatamente alguns
colonos caíram em doença. Uma doença que não tinha explicação e que levava a
uma loucura febril.
O padre culpou algumas pedras
altas que salpicavam a encosta, restos de - para ele, pelo menos - de uma
religião antiga e herege. Foi decidido, por sua supervisão, que o povo devia
construir uma igreja. Com a presença de algo sagrado na terra, pensava-se que
seja lá o que residia anteriormente na colina, seria desenraizada.
Estavam errados.
Apesar dos esforços a doença só
se tornou pior, e muitos começaram a desconfiar que o próprio padre estava em
aliança com as forças abomináveis. Alguns dos anciãos levantaram-se contra ele,
mas sob ordens do padre, os membros da congregação de sua igreja executaram
todos aqueles que se rebelaram. Temendo por suas vidas, muitos colonos fugiram
durante a noite, acompanhando outros anciões para outras terras. A maioria
conseguiu sair da colina, mas alguns voltaram apavorados, dizendo terem sidos
perseguidos por uma figura sobrenatural pela floresta, e foram incapaz de
fugir. Para salvar suas vidas, eles comprometeram a comunhão eterna com o padre
e sua igreja.
Dizendo receber visões do próprio
todo poderoso, o homem santo assegurou aos aldeões que, se seguissem precisamente
suas instruções, estariam a salvo. Todas as noites se amontoavam na igreja
enquanto o padre vomitava suas visões e condenações, praguejando ódio à aqueles
que haviam o deixado. Ficou claro para alguns que ele havia enlouquecido, mas
até então o homem havia formado um conclave rigoroso, brutalmente fiel, de
seguidores que pendiam sobre cada palavra que saia de sua boca, tornando toda e
qualquer rebelião violenta, sangrenta e incerta.
Muitos falavam de sonhos sem
formas, cegos pela escuridão, e várias famílias foram encontradas em suas
casas, sufocados no meio da noite. O padre culpou aqueles que tinham escapado e
contou histórias de como esses eram a fonte da escuridão que perseguia seu
povo, os amaldiçoando por um final desesperado. Amargura e raiva se espalhou
pela comunidade e vários aldeões foram selecionados para descer a colina e
trazer de volta os anciões que seriam julgados e sacrificado, se necessário.
Mas ninguém conseguia sair dali. Não importa o quanto tentassem, a igreja estava
lá, não importava em que direção andassem, pra cima do para baixo, voltariam
para onde haviam começado, confusos e desorientados.
A doença se espalhou, e os vigias
da aldeia, um a um, foram encontrados estrangulados e multilados nas ruas, com
testemunhas clamando ter visto uma estranha entidade rondando durante a noite. Em
pânico, ficaram sem opção a não ser se apoiar em sua religião por salvação, na
esperança que a igreja os protegeria. Todos se amontoaram juntos lá dentro,
apavorados com o que estava saindo das sombras durante a noite.
Nessa parte, a escrita mudou
marcantemente, ficando bastante rasurada, fervorosa, e mais pronunciada. O
próprio padre tinha tomado o livro do cronista da aldeia, pois tinha
considerado sua história insatisfatória. Seguiram várias páginas, rasuras em um
Inglês emaranhado que mais parecia Latim, e um número de linguagens
indescritíveis e esquisitas. Cada página estava preenchida com palavras de dor
e desprezo por aqueles que haviam o deixado, e então, as palavras simplesmente
pararam.
***
De pé, naquele lugar infernal e
perturbado, eu corri meus dedos pela espinha do livro e pude ver claramente que
a última página do livro tinha sido arrancada. O que estava escrito lá, eu não
sabia.
Me senti oprimido pelo relato que
tinha acabado de ler, enquanto um medo muito palpável e real subiu por todo meu
corpo. Me ocorreu um pensamento, de que os relatos de doença que afetaram os
exilados de Dungorth era notavelmente semelhante às experiências de John. Eu
não podia negar as coincidências e comecei a suspeitar que algo realmente tinha
afetado-o; algo realmente tangível. Uma contaminação do solo? Um veneno,
talvez? Eu já havia lido sobre bolsões de gás metano que escapavam através da
terra ou no mar que haviam matado muitos, mas não estava fora de questão que
algo semelhando, em doses menores, poderia ser o que causava alucinação em
massa, doenças e loucura. Era a explicação mais viável que eu conseguia ter.
Mas então, por que não tinha me afetado? Talvez, como dizia no livro, algumas
pessoas eram mais imunes à contaminação do que outros.
Minha atenção, mais uma vez,
voltou para o túmulo, ou pelo menos o que tinha sobrado dele. Me perguntava o
que o povo tinha feito com o corpo do amado, mas também odiado padre, assumindo
ser aquele referido como "o pai". Teriam re-enterrado em outro local?
Talvez os seguidores estivesse com medo que o túmulo fosse saqueado. A resposta
veio a mim quase que imediatamente: Eles tinham o queimado em seu túmulo, em
baixo da própria igreja que haviam construído; O buraco era onde seu corpo um
dia tinha sido posto, agora marcado eternamente pelas manchas negras da fumaça
e da brasa. Estremeci com o pensamento que tudo isso podia ter sido feito
enquanto ele ainda estava vivo.
O ar ficara notavelmente mais gélido,
mas não foi isso que marcou o começo do meu calvário. Eu me curvei, olhando
de perto o que enxergara na borda do
túmulo. Eu não conseguia acreditar. Lá, na borda do buraco, havia uma assinatura
cruel deixada pelo ex-atendente da igreja.
Na escuridão, eu devia ter deixado passar, mas agora estava nítida. Era
uma grande mancha negra em formato de uma mão, escurecida e queimada, como se
algo tivesse tentando sair da sua cova eterna e esquecida.
Minha respiração saiu lentamente
de meus pulmões, congelando no exterior enquanto meu coração acelerava pela
mera possibilidade do que algo tinha se levantado do buraco no chão. Enquanto o
ar esfriava, me levantei e fiz meu caminho até o pé da escada - tinha que sair
logo dali, para a luz do sol, para a saída. Foi então que ouvi. No começo era
só a impressão que escutava algo. Depois ficou mais definido, aumentando
intensamente e claramente. Algo agitava-se lá em cima.
Pessoas. Muitas delas, gemendo e
lamentando, chorando por suas vidas em coro. Cânticos na escuridão, ambos
cristãos e de algo mais antigo, uma fétida religião que havia desaparecido por
bem. Enquanto as lamúrias de miséria aumentavam, uma única voz se distinguiu
das outras. Ensurdecedoramente terrível, falou sobre o fim dos tempos, da
traição e do pecado desimpedido. A voz gritava e urrava, renunciando a todos
que não ouvissem, um sermão vingativo vindo do altar de pedra no andar de cima.
Sem pensar, pulei para dentro do
túmulo vazio, desligando a luz do meu celular e fique encolhido, tremendo até a
alma por causa das vozes que praguejavam contra o mundo e contra os outro -
ódio e absoluto desespero com o mal, tanto fora quanto dentro. Os rugidos de
agonia aumentavam, homens, mulheres e crianças chorando e xingando por
acreditar terem sido abandonados por seu Deus. Acusações, perseguições e o
rasgar da carne. Depois, o silêncio. Agarrei-me ao fundo da cova carbonizada,
cravando minhas no solo. Meu ceticismo a respeito de qualquer força invisível
ou espiritual tinha se reduzido drasticamente. Tremendo violentamente por causa
do frio, esperei passar alguns minutos até ter coragem de ligar novamente a luz
de meu celular.
Espiando por cima da borda do
túmulo, me desloquei lentamente até o chão. Os salões estavam vazios, não havia
nada além de ossos e crânios quebrados de inúmeras vidas arruinadas por causa
do mal que vivia na encosta. Finalmente criei coragem com meus nervos
desafiados e crenças destruídas, subi as escadas vagarosamente, com um medo inflexível
do que poderia estar me esperando no topo; mas infelizmente era a única saída,
e estaria ferrado se ficasse ali para apodrecer como tinha sido o destino
daquelas pobres pessoas, encolhidos nas profundezas.
O salão estava vazio. O mais
silenciosamente o possível, cruzei o lugar desviando rapidamente dos detritos e
escombros, cortando dentre o silêncio opressivo, finalmente saindo pela porta
para o ar livre. Uma vez fora da igreja caí de joelhos, tremendo de ansiedade e
tentando processar a experiência toda. Minha
mente voltou para o que tinha estado naquela sepultura, e mais importante, onde
estava agora. Então eu soube. Correndo o mais rápido que pude, atravessei entre
os arbustos e o matagal, alcançado a trilha rapidamente, sem ser parado pelo
mal que havia impedido os colonos de escapar, mas não parei, metade de mim morrendo
de medo de ser perseguido e a outro metade implorando para que meus instintos
estivessem errados.
O ar queimou meus pulmões enquanto
me apressava pela trilha, em minutos o portão de madeira já estava a vista e eu
estava fora da colina maldita, um lugar que nunca me atreveria a ir novamente.
Nem por dinheiro, nem por uma história, nem por nada. Eu teria respirado em
alívio, mas isso nem passou pela minha cabeça. Eu tinha de voltar à pousada o
mais rápido possível. Continuando a correr o mais rápido que pude, lutei contra
a exaustão e o limite do meu corpo, e logo eu já estava no Lorde de Dugorth.
Cambaleando em direção da construção
antiga, foi então que ouvi. Gritos, de agonia, de terror, e de misericórdia. Eu
soube imediatamente de onde e de quem. Descobri em mim uma nova energia quando
me pus a correr mais uma vez, atravessando as portas do bar. Lá estava tudo
quieto. Pessoas da vila estavam sentadas, imóveis olhando suas bebidas. O
senhoril também parado, olhando para o chão. Os gritos continuavam a vir dos
quartos de cima. Implorei e supliquei por ajuda a alguém, mas ninguém ouvia.
Percebendo que me encontrava sozinho para enfrentar aquilo, parti para as
escadas. Para minha surpresa, o senhoril interveio com força me puxando para
trás, seus braços apertados com força em meus ombros.
"Deixe ele meu filho, você não pode o ajudar!" ele gritou, conforme mais dois homens se esforçavam para me conter.
Em um impulso forcei meu cotovelo para trás e acertei o senhoril, me soltei e em uma corrida desesperada derrubei os outros dois homens enquanto subia a escada. Seguia os agoniados gritos até o quarto de John. A porta estava trancada. Respirei fundo e comecei a arrombar a porta com meu ombro, batendo, batendo e batendo, sentindo ela ceder. A cada empurrão eu ouvia o gaguejar interrompido de alguém lá dentro , como em um choro. Finalmente, a porta cedeu e eu pude entrar no quarto.
Por um momento testemunhei algo que se parecia com um homem, ou pelo menos algo que um dia foi vivo. Escurecido e queimado, virou a cabeça para me olhar - Não posso dizer se ele chegou a me ver, uma vez que não tinha olhos. Em seus braços estava o amassado sem vida corpo de John R---.
Então se virou, esgueirando-se
para fora por uma janela aberta, levando junto o corpo do homem. Ambos haviam
partido.
O quarto tomou uma aparência aquosa e volátil. Não sei se foi a extensão dos meus esforços ou apenas a aproximação daquele ser grotesco, mas um enjoo tomou de mim, atravessando meu estomago e, enquanto eu perdia a consciência, eu chorava em desespero.
***
Isso tudo aconteceu a vários
dias. Parece que bati com a cabeça contra o chão quando caí e feri minha perna
de algum jeito. O médio da vila que me examinou receitou-me alguns antibióticos
para o que acreditava ser uma infecção estomacal, e um sedativo para aliviar
minha ansiedade. Com pouca coisa para me distrair, tomei meu tempo passando
tudo que eu lembro para o papel. Afinal, um escritor tem de escrever.
Ontem visitei pela primeira vez o
quarto de John depois que ele foi levado. Estava silencioso, e parecia vazio de
um jeito estranho, como nunca achei que poderia estar. Uma ausência de vida é o
melhor jeito que consigo descrever. O lugar estava revirado, com seus pertences
espalhados pelo chão. Assumi que ninguém tinha estado lá desde então, o
senhorio devia estar com muito medo, mas eu não podia culpá-lo por isso. Quando
me virei para sair do quarto vago, vi um item que parecia não pertencer ao
lugar. Na cama que um dia tinha sido de John, havia um pedaço de papel amassado
e manchado. Eu sabia de onde era, mesmo sem precisar lê-lo; era a última página
da crônica, o final daqueles que tinham se estabelecido na colina. Um labirinto
de frases repetidas em línguas misteriosas e esquecidas, espalhadas pelo papel
frágil, mas algo em inglês se destacou. Simplesmente dizia: "Ninguém vai
embora".
Eu não sei mais o que fazer
agora. Me sinto exausto, mas minha mente continua revivendo os últimos dias,
parte por parte. Estou arruinado pela culpa, sinto que minha presença naquela
colina fez com que aquela monstruosidade viesse buscar John. Caso o contrário,
por que esperaria tanto tempo?
Acho que eu tive sorte porque fui
para a colina quando aquele ser não estava lá, e foi isso que provavelmente
salvou minha vida. De qualquer forma, seja lá como os moradores vão explicar
isso, vou relatar o desaparecimento de John quando voltar para Glasgow e também
pedirei para os policiais darem uma olhada no número de moradores desaparecidos
ao longo dos anos. Acho que eles vão se surpreender com a quantidade.
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